quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Título pela janela

Na hora não teve dúvida. Imitou os gestos de papai e saiu pulando pela sala, entre os sofás e a mesa de centro. Mesmo sem ter uma noção exata do que aquilo representava, aos tenros 10 anos. Vendo o entusiasmo do herdeiro, tomou-o entre os braços e jogava o rebento para o alto. Por pouco o menino não bate com a cabeça no teto. Naquele momento isso nem passava pela cabeça pelo então jovem pai. O ano era 1992 e o Flamengo era campeão brasileiro pela quinta vez. Ou quarta, como queiram.

Desde então, o que parecia ser uma atitude de seguir os passos do pai, tornou-se uma paixão. Posteriormente concretizada em amor. Quiçá religião. Porém o tempo tratou de arrefecer o arrebatador sentimento e a relação esfriou, como muitos casais. O desempenho frente aos grandes clubes do país nos anos posteriores obrigou o rapaz a crescer e a arrefecer o entusiasmo pela combinação vermelho e preto. Quando podia, assistia ao time do coração pela tela do televisor.

Em poucas oportunidades foi ao estádio mais próximo para ver os guerreiros que vestiam aquele manto. Já consciente de que o esquadrão estava à sombra do formado por Júnior, Zinho e companhia. Enquanto os amigos e colegas de trabalho esbravejavam em defesa da respectiva equipe querida, já adulto preferia escutar atento, sem dar tanto pitaco. Temia que a frustração de outrora retornasse. Assim, não fazia muita questão de acompanhar as partidas pela televisão. Contentava-se em ver os resultados nas tabelas impressas nos jornais de segunda-feira e acompanhar os gols da rodada no domingo à noite.

E foi dessa forma que viu o clube faturar vitórias e criar novos ídolos. Com gols de Adriano e Pet, o Rubro-negro subiu pelas tabelas. Temendo que algo ocorresse, preferiu manter a velha tática: não acompanhar ferrenhamente o time em campo e checar as manchetes e tabelas no dia seguinte. Às vésperas e próximo de mais um título, o crescido torcedor já sabe como serão duas horas do próximo domingo. Com o apito final, espera que urro das ruas soe por as janelas. Só assim, como 17 anos atrás, saia aos pulos e gritos entre os sofás e a mesa de centro.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O pecado da gula visto sob os olhos de uma criança

Por Samira Pereira

Sempre fui uma criança ativa e cheia de ideias mirabolantes. Aprontei muito – de forma saudável-, e não nego, sou responsável por grande parte dos fios de cabelos brancos que se encontram nas cabeças de meus pais. Posso citar intermináveis exemplos de minha peraltice, mas aqui enalteço uma, que por acaso era um dos meus maiores divertimentos. Costumava achar os pedaços de barro mais bonitos do barranco que fica próximo à minha casa. Depois deste árduo trabalho, dividia as partezinhas em bronze, prata e ouro, conforme sua beleza e cor. Por fim, após passar horas procurando e separando, comia todas elas. Isso mesmo. Pode parecer coisa de gente louca, mas eu considero algo típico de criança. É verdade que nunca vi nenhuma delas fazendo isto, mas não deixo de pensar que a brincadeira é própria da idade - cerca de cinco anos.

Quando fui descoberta por minha mãe, levei uma baita bronca. Ela alegava que eu ficaria doente, teria que levar várias injeções e ficar internada. Papo de mãe, não é mesmo? Discurso muito parecido ao de quando ela percebeu que eu comia todas as cabecinhas vermelhas dos palitos de fósforo. Afinal, fósforo é um elemento químico. E este tipo de substância faz bem ao corpo humano. Pelo menos era isso que eu imaginava. Pensava estar me fortalecendo provando aquelas deliciosas pontinhas cor da paixão que estalavam na boca. Elas eram azedinhas, como eu gostava. Depois de destruir várias caixas dos palitos, fui obrigada e deixá-los de lado. O medo de ir ao hospital era maior do que a vontade de comer.

E assim, deixando-me levar pelo pecado da gula, tomei chá de formiga, já que diziam ser bom para dor de barriga e comi capim, que era um vegetal (sempre soube que as folhas faziam bem ao organismo) que as vacas saboreavam com tanto gosto. Hoje, olho para trás e percebo o quão inocente e sapeca fui durante a minha infância. A curiosidade era maior que a razão. Sempre foi, e por vezes continua sendo. Não como mais o barro nem a cabeça do fósforo porque sei que existem alimentos um pouco mais saudáveis e apetitosos que eu possa saborear. Também não provo mais folhinhas de capim, deixo para as vacas, elas parecem mais felizes com a comida. E o chá de formigas? Prefiro deixar os bichinhos viverem em paz.

São pedacinhos de uma infância repleta de lembranças, e boas lembranças. Quando tiver um filho, alertarei que a porta do hospital é a serventia da casa... Se ele vier a comer algo incomum ao meu atual paladar, a injeção é certa. Assim como a palmada se cortar em retalhos o jogo de lençol novo. Mas deixa pra lá, esta já é outra história!

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O segredo dele

Ele via a faixa dos 50 à sua frente, pertinho. Ela recém cruzara as dos 40, pouco tempo depois. Se tivessem se conhecido anos antes, jamais imaginariam que um dia haveria “ois” e “boa tarde” entre os dois. A sugestão foi de uma amiga em comum, irmã dela, casada com o amigo do quase cinquentão. No bom sentido, a moça introduziu um ao outro. Ela recatada, ele mais rodado que o estepe do motorhome do Tio Sebastião.

A introdutora alertara: “É um caco. Mas, é um caco bom, sabe?”, resumindo para a irmã mais velha. Conheceram-se, trocaram telefones. Também carícias, telefonemas depois. Ele estava sozinho há alguns meses. Ela há alguns verões. “Por que não?”, pensavam em uníssono, cada um de sua janela. Engataram. E assim ficaram durante o período permitido.

Empresário com negócios no exterior, passara o período de férias em terreno brazuca. Ele precisava retomar o ganha-pão além mar deixado para trás, meses antes. Apaixonada, ela não conseguia entender como o forte candidato a impor a coroa de príncipe encantado a deixaria ali. Depois de anos de ventania, enfim conseguira catar um pedaço de papel.

Ele foi. Ela não. O primeiro manteve sua rotina de trabalhos quase forçados em terras inóspitas. A cidadã teve de encarar novamente o vento forte à cara. Com ele por lá e com a ferida da partida ainda aberta, ela voltou à realidade e encontrou um novo candidato à tampa da sua panela. Envolveu-se com o “tampa” e apresentou-o aos pais. Estava certa que finalmente encontrara a sandália para seus pés tão cansados.

Ele voltou para o período de férias em terras canárias. Ela estava com o “tampa”, ainda que as coisas não andassem em ebulição, como presumia como seria o amor de sua vida. Ele voltou à labuta, novamente, de olho num cargo diplomático na terra-natal. Ela manteve o “tampa”, até que a fervura do caldo levantou e tornou a situação insustentável. Após a decepção, decidira que tão cedo não iria se envolver com alguém e apresentá-lo aos fadigados pais e mães.

Ele voltou, como de hábito, absoluto que adquiriria o cargo cobiçado, e depois, conquistado. Ela pensava em dar um tempo nesta história de tampas e sandálias. Prometera às suas primogênitas que ficaria longe de par de calças que aparecessem em meio aos fortes ventos. Porém, ao saber da condição dela, ele encheu-se de esperança. Ainda que contida, ela nutria algumas esperanças.

Ocasionalmente, ele a procurara em meio ao tumulto de um baile badalado na cidadezinha querida. Ela confessou o que ocorrera até ali e a condição de panela destampada em que se encontrava. Porém, alertou que a pressão familiar era das grandes. Que tão cedo não deveria haver envolvimento, com medo das reprimendas do paterno. Tornaram-se segredo. Diante da platéia.

Encontravam-se furtivamente, mantendo a chama de anos atrás viva. Tudo era levado em absoluto sigilo. Ela dizia que iria à até esquina comprar cigarros – mesmo sendo não adepta ao tabagismo. Já que morava sozinho, ele não dava muitas explicações. Passara a chamá-la de “meu segredo”. Fins de semana e durante os dias de labuta, os dois encontravam-se vez ou outra. Passavam a limpo os dias desde a última vez que se encontraram e davam continuidade aquele pacto. Carinhosamente, ele a chamava de “meu segredo”. Ela adorava aquilo, como doce palavras fossem.

Porém, a cada dia, o segredo parecia com tudo menos um segredo. Saiam separados, mas compartilhavam a mesma mesa no bar. Em seguida, saiam juntos e compartilhavam a mesma mesa do barzinho. Na cara dura, ainda que “meu segredo”. Ela contara às filhas, que reagiram com receio. Ele, aos seus garotos, que manifestaram esperança de o papai já cinquentinha, como preferia, sossegasse seu facho.

Numa destas saídas do quase decifrável segredo, ele não se conteve. Puxou a senhorinha para dançar no embalo da banda do barzinho _ com um pianista afinadíssimo. A turma de cidade pequena, boquiaberta desviara a atenção para a cena. Ao soar a última nota, embriagado pela situação, ele tascara aquele beijo na boca. Uns afirmar categóricos terem visto uma língua entre os lábios. Revelara aos munícipes o que antes reprimia diante de toda a sociedade.

Segredo revelado, pediu a ela uma desculpa solene. Teria passado dos limites naquele momento. Ainda, que não gostaria de alimentar falsas esperanças nela. Desfariam o re-relacionamento. Desmancharam os laços. Ele alegava para si e aos mais próximos: “Bom mesmo era o segredo”, justificou.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Em 30 minutos, talvez 40

Iniciar, Programas, Microsoft Office, Word. Fica a pergunta: por que “palavra” se todos usam para escrever mais de uma? Vai saber. A tela predominante branca, representando uma folha, é um convite ou um desafio? Mais uma pergunta que fica sem resposta. Pelo menos a primeira palavra está definida. Coloco o nome da cidade, espaço, um traçinho e outro espaço. Uma das obrigações do texto do diário em que a história deverá ser publicada.

Feito isso em um segundo, quem sabe um pouco mais, a barrinha vertical cisma em ficar piscando. Clamando por mais palavras, por mais trabalho. Com a mão direita espalmada, coço o queixo, às vezes habitado pela barba rala meio alourada. As costas pressionam o encosto e cadeira vai para trás. As rodinhas me afastam das letrinhas estampadas do teclado. Olho para o teto. Continua da mesma cor da semana passada. Coloco algumas palavras. Não me agrada. Apago selecionando tudo e pressiono o delete. Fica só o nome da cidade na frente mesmo. Displicente, digito despretensiosamente “siodjsaidjiasdja”. Repito a operação anterior.

Uma nova idéia, novas palavras começam a formar o que horas depois será lido por uma grande porção de pessoas ou meia dúzia. Sai a primeira fase, começa a segunda. Jogo tudo isso numa outra linha e começo novamente. Agora vai. Foi. O que sobrou foi apagado. Um parágrafo, com umas cinco ou seis linhas. Algumas vezes tem sete ou até oito. Penso que as seguintes deverão ter o mesmo tamanho. Sempre me lembro de um livro do jornalista Ricardo Noblat quando escrevo o primeiro parágrafo. O cara tem mania de escrever todos os parágrafos do mesmo tamanho.

Tento, mas sempre há os que ficam maiores, outros menores. Não dou bola. Coloco mais algumas palavras e recorro às anotações. “Cadê aquele parte em que o cara falava sobre a estimativa para o próximo mês?”, converso mentalmente. Achei. De primeira não entendo aqueles rabiscos e garranchos. Observo novamente, abro aspas e toco o que o cara falou. Fecho e coloco o nome do carinha e sua profissão depois da vírgula.

Procuro na internet algo relacionado. Às vezes serve. Opa, já estou pra começar o quarto parágrafo. Olhos os três anteriores e me dou conta que não estão do mesmo tamanho. Deixo a mesa para saber qual o espaço, em que página será acomodado aquilo tudo. Aproveito e deixo a sala. Tomo um copo d’água, pego um cafezinho. Comento algo com alguém e volto a me sentar. Reviso o que foi escrito até ali. Conferir se não passou uma bobagem e para poder retomar o assunto.

Escrevo mais um ou dois parágrafos. Será que está pronto? No texto sobram afirmações, nos meus pensamentos as interrogações. Para tentar me convencer, nova revisão. Desta vez mais criteriosa, de olho em possíveis erros – digitação, palavras repetidas e até o estilo. Recordo de uma informação bacana que cairia bem depois da primeira fase do parágrafo três. Escrevo e gosto. Fica ali. Volto umas três sentenças antes para continuar a correção. Acredito que está bom. Não! “Ufa”, suspiro. Ponto final.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Casal Jota

Em comum tinham apenas o “jota” grafado no início dos nomes. Assim era uns dez anos antes, quando tiveram o primeiro contato. Na época o rapaz nem sabia o que queria ser quando crescer. A moça ensaiava os primeiros passos na profissão. Porém, não trocavam muitas palavras. Nada além de “oi”, “oi”, “tudo bem?”, “tuuudo”. E assim foi por volta de três pares de anos.

Passado o período tornaram-se colegas de profissão. Cada qual no seu emprego. Tinham a mesma formação. Trabalhavam em setores diferentes, ainda que correlacionados. A menina abastecia com informações empresas do gênero em que ele labutava. Ainda assim, os contatos ficavam no “oi”, “oi”, “tudo bem?”, “tuuudo”. Acrescidos de “alguma novidade por ai?”, de ambos os lados, praticamente. Por motivos meramente profissionais, os dois começaram se aproximar. Coisas de trabalho.

Deve ter sido motivado por algum grande acontecimento na empresa em que a moça dava o sangue. Ele cumpria com suas obrigações no local de trabalho. Por força da labuta, passaram a se falar com mais freqüência: “oi”, “oi”, “tudo bem?”, “tuuudo”. “Acha que dá para mandar aquele material até terça? Conseguiu marcar com aquele professor de química?”.

Em meio aos assuntos, descobriam um pouco mais sobre um e outro. Assim, guardavam para si “Ele é bacana, inteligente”, pensava a mocinha. “Ô lá em casa”, suspirava o guri. Porém, quando se encontravam em ocasiões de trabalho permanecia o rito “oi”, “oi”, “tudo bem?”, “tuuudo”. Foi durante uma conversa com um amigo em comum que os pensamentos contidos foram externados. O coleguinha tratou logo de fazer às vezes de cupido. Ou pombo correio. Vai saber.

Numa determinada festa, encontraram-se. “Oi”, “oi”, “tudo bem?”, “tuuudo”. E ficaram um a cercar o outro. Ambos aguardavam um ato, uma palavra que confirmasse o que o bocudo dissera. Passada a tensão e, lá pelas tantas, tiraram aquela história toda a limpo. Beijaram-se, trocaram confidências, números de telefones particulares e promessas de “me liga”, “vamos combinar alguma coisa”.

Passado um semestre, conversam menos durante o trabalho e mais em seus momentos de vida privada. Os papos são alongados, ainda que mantenham as saudações de uma década, acrescido de um vocábulo: “Oi, amor”, “oi”, “tudo bem, amor?”, “tuuudo, môr”.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Pompeu, a lenda

Talvez pela proximidade entre as duas palavras, boa parte acredita que legendário tem a ver com legenda. Nada disso. Legendário é uma capacidade, uma aptidão, para poucos. Antes do sujeito vir ao mundo dos vivos brilhar e causar, papai do céu tasca o carimbinho. Legendário é a potenciabilidade do cidadão em se tornar uma lenda. Pois esta é uma história sobre uma delas. Hoje, dado o remoto tempo, uma lenda urbana mantida viva pela lembrança de uma meia dúzia.

Desde seus primeiros aniversários, Pompeu parecia um rapaz como todos os outros. Quando garoto queria ser ponta esquerda de um famoso clube do futebol, na época em ascensão. Admirado em sua terra natal, conquistaria o mundo e seus dólares. Vestiria a amarelinha. Fariam carreatas na cidade em que cresceu quando viesse passar suas férias. Porém, como todo sonho de menino, perdera o interesse. Destinava seus esforços em adquirir conhecimento e ser um cidadão direito.

E assim fora por um longo período. Até, certo dia, cansado da monotonia à espreita, decidiu que faria as coisas diferentes. Queria o inusitado. Causar mesmo. Sem fazer muito esforço, apenas dando vazão aos devaneios, cativava colegas. Juntava amigos. Era o cara da turma. Nas festinhas, enchia a própria latinha sem medo. Mamava como um cordeiro desgarrado. Assim, colocava em prática o que lhe ocorria. Passou a ser atração e sinônimo de diversão garantida ao subir nos palcos espalhados pela geografia do entorno.

Nas formaturas universitárias, só esperava a chamada para congratulação de ex-acadêmicos em cima do “stage” ao som de “Amigos para Siempre”. Estava ele, ditando o ritmo da banda. Puxando as coreografias inusitadas. Levando ao delírio a ror. Não tinha erro. No show do grupo local ou de uma bandinha dos arredores, lá estava ele. Animado, coreografado e mamado. Assim era Pompeu.

O assédio era intenso. Os seguranças já o conheciam. Dizem que umas duas empresas distribuíam fotografias do rapaz entre seus profissionais para coibir sua ação. Era tido como “O Impostor”, do Pânico na TV, daquele tempo. Burlava sistemas e tava lá no alto. Causando. Foi quando tentou o seu golpe mais agudo. No show de um cantor popularesco em uma cidade vizinha. O interprete, na época, andava em alta. Sua música era a mais tocada nas rádios com programação dedicada as domésticas, vigias e porteiros.

Na determinada hora e local, lá estava ele. As primeiras dancinhas rolavam e ele alongava. Na hora do bis era certo que soaria a canção contagiava corações, matinês e preferências. Soaram os primeiros acordes e foi na turma do gargarejo. Na hora do refrão, no vacilo da linha defensiva, lá estava ele. Ensinando o ídolo de muitos que aquela dança era para poucos. Foi ovacionado e tirado de sobre o palco.

Parcos registros fotográficos mantém a prova cabal. O assunto tomou conta da região sul de todo o globo terrestre. Editores estampavam manchetes e reclamavam da falta de imagens de Pompeu. Os chegados prepararam uma homenagem. Destituída quando saiu um decreto municipal, publicado em forma de edital. O prefeito em pessoa entregaria a chave da cidade ao autor da façanha. Quem sabe até ofertaria uma cadeira numa repartição. Mas desde então, resolveu deixar as estripulias de lado. No dia do retorno, desviou a atenção dos batedores da Polícia Militar. Entrou pelos fundos. Deixou o circo armado a esperar até que cansassem e desistissem daquela homenagem.

E até hoje, numa formatura universitária, num show de um artista apreciado, uns se relembram com lágrimas nos olhos. Ainda que o sorriso esteja no rosto. Outros ao ouvir a canção “Festa no apê”, levantam-se, colocam os braços para trás, com uma mão segurando a outra, sobre a lomba das nádegas, e aguardam até o fim da melodia em respeito à lenda que ficou para trás sem deixar o legado ou herdeiros.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Esculachos de família

Já com a idade avançada, a senhora dava sinais que não tinha mais a audição tão apurada como outrora. Estava ficando meio surda. Além disso, com certa periodicidade entrava em conflito com a filha mais velha, que morava na casa ao lado. Para poder cuidar, ainda que distante, de dona Vilma. Tarefa difícil para a filha, que em alguns momentos lhe faltava paciência por causa das manias da mãe. Acabava-se em discussões em tom alto com a velhinha.

Briga familiar para uns, motivos de gargalhadas dos moradores das casas vizinhas. Muitas vezes, o bate-boca ocorria com cada uma de seu lado do muro. Volume no 10. Com respostas agressivas e outras tantas descabidas. Aos primeiros insultos, os vizinhos iam para janela. Faziam de conta que estavam a verificar se viria chuva, se iria esfriar.

Certo dia, cada uma das mulheres estavam em suas respectivas casas. Dedicavam as horas em tarefas domésticas. E, mentalmente, a planejar os próximos xingamentos para fazer bonito para quando o tempo fechasse. A filha estava por iniciar a lavagem das roupas que enchiam os cestos. A velhinha a lavar a louça do cafezinho com as fagueiras amigas minutos antes.

Do outro lado do muro, a filha de dona Vilma catava cuecas e bermudas do filho e do marido, espalhadas pela casa. Ainda, era necessário pegar as roupas de cama e ela pede ajuda à neta de Vilma, do outro lado da residência, trancada no seu quarto decorado com motivos adolescentes. “Minha filha, vem aqui. Preciso da sua ajuda!”, gritou para que a mocinha escutasse. Do outro lado, com as orelhas cansadas pelo tempo, dona Vilma saiu batendo as tamancas no chão. Furiosa, partiu em direção ao muro. “Sou linguaruda mesmo”, dando início a mais um colossal barraco.

sábado, 25 de julho de 2009

Uva, o fruto proibido

Adão e Eva foram expulsos do paraíso. A historia bíblica todo mundo já ouviu falar. O que pouca gente sabe é que na década de 1950 era a uva o fruto proibido. Obviamente, não tinha as mesmas restrições do que o alimento que dava no pé em que morava uma serpente. Em uma específica época do ano, naqueles tempos, o consumo era considerado pecado. Fruto que rendia oras de penitência após a confissão ao pároco.

Em seus tenros 10 anos, Joaquim não tinha conhecimento do fato. Na década, anos 50, a semana santa já tinha início no final da tarde de terça-feira. Adultos e idosos jejuavam de verdade. Apenas uma refeição por dia em que se consumia o mínimo. Em algumas casas, como a de Quinzinho, as obrigações eram exigidas dos mais jovens. As ruas ficavam vazias. As crianças não podiam brincar. Tédio geral entre a molecada. Ainda, a comunicação entre as pessoas era mínima. Leves e lentos acenos com as mãos e cabeça. Olhares limitados. As conversas tinham um tom quase inaudível e de parcas palavras.

Já na quinta-feira, faminto e entediado, Quim acordara com um desejo incontrolável de comer uvas. De família muito simples e jovial para o trabalho, não tinha um níquel sequer nos bolsos das calças curtas ou guardado em uma caixinha de papelão. Passará a manhã toda sonhando com cachos bem fornidos e repletos de bolinhas adocicadas. Resolvera então tomar uma cédula de uma bolsa desavisada ao alcance de seus olhinhos curiosos e mãos com dedos pequeninos.

Em vistoria pelo recinto, mirara a bolsa da Tia Zezé, que dera o ar da graça há poucos minutos. Foi aumentar o silencioso coro de orações. Sem nenhuma noção do valor de dinheiro, furtivamente abriu o objeto e puxara a primeira cédula à vista. Era uma nota de 20 cruzeiros. Que nos dias de hoje equivaleria algo superior a 100 reais. Partiu para um armazém nas cercanias que se gabava das melhores e mais doces frutas do vilarejo.

Na ponta dos pés e escorado no balcão, mostrou a nota e apontou para as frutas pequenas e rotundas. “Tudo de uvas, senhora”, ordenara Quinzinho à senhora do estabelecimento. A mulher queria saber a finalidade da grande quantidade. “Sua mãe fará doce de uva?”. O menino assentiu. Depois, perguntara pela cesta. Naqueles tempos não existiam sacolas plásticas. Os consumidores eram obrigados a portar de casa o recipiente para acomodar as compras durante o trajeto de volta. Joaquim disse esquecera e que voltaria em breve para consumar a compra. “Traga uma das grandes”, orientou a balconista, sabendo que seria uma compra e tanto. Quiçá, liquidaria o estoque do fruto da venda.

Em alguns minutos ele retornava ao local com uma cesta de palhas de tamanho quase equivalente ao seu. A senhora do estabelecimento enchera o recipiente e Quinzinho subia a ladeira arrastando cachos e mais cachos da fruta predileta com dificuldade e esforço. Encontrou um cantinho no rancho nos fundos da casa e iniciara a comilança, silencioso. Com língua e dentes arroxeados, mais do que satisfeito, minutos depois, percebera que a quantidade do cesto praticamente não alterara. Resolvera ser gentil com os primos mais jovens, que eram forçados a irem até a casa de parentes para não fazerem nada durante os dias santos.

Discretamente, chamara um a um. Instantes após, eram seis ou sete pequenos, todos mais jovens que Quim, ao redor do cesto cheio. O rapaz poderia não saber o valor do dinheiro na época. Mas certamente tinha noção, dado o volume no cesto, que cometera um furto e tanto. Por isso, controlava os priminhos para que não deixassem o local com indícios do consumo de uvas. Muito menos com o fruto em mãos. Pedia para que não fizessem barulho.

Não adiantou muito e a pequena Dorotéia aparecera na sala com uma baguinha na palma da mão, causando espanto aos adultos. Dona Diva, mãe de Joaquim, questionara onde Téia encontrara uvas. A minúscula dedo de seta caguetara o primo. Enfurecida, a prever o meio em que o filho conseguira fundos para adquirir frutas, Diva partiu em busca do rapazinho. Deu de cara com a cesta ainda cheia e a molecada a correr. Joaquim permanecera. Imóvel, imaginava o que poderia lhe ocorrer.

Diva pegou o rapaz por uma das orelhas e levou-o até seu quarto. No recinto havia uma pequena janela para o quintal. Joaquim via a mãe em frente a um marmeleiro. A senhora escolhia uma das varinhas que cresciam na árvore. Selecionava uma poderosa e temida vara de marmelo. Artefato que ainda causa calafrios a alguns que hoje já cruzaram os 50 anos. De posse de uma que julgou melhor, voltou ao interior da residência.

Joaquim suava frio e engolia o choro. Diva aparecera na porta. Tomou o menino e colocou Joaquim de bruços na cama. Sem piedade, puniu o rapaz com golpes fortes da tal vara. A cada estocada, uma nova tira avermelhada emergira da pele clara das pernas do garoto. A senhora deve ter praticado o ato por não mais do que cinco minutos. Joaquim tinha a sensação que estava a receber os golpes por cinco horas.

Diva concluíra a punição exemplar. Esperava que depois daquela lição o filho jamais roubaria bolsas desavisadas e comeria uvas em dias sagrados. Quinzinho estava aos prantos. Magoado. Não lhe doíam as escoriações. Muito menos a vergonha que fatalmente sentiria nos próximos 10 dias, em que os vergões estariam expostos por conta das calças curtas, traje comum da época. O que causava enorme aperto no peito é que não conseguia entender como a mãe teve coragem de aplicar-lhe uma surra monumental daquelas. Em pleno dia santo.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Xavecos do sexagenário

Pelos mesmos motivos de Lourival (conheça o caso), chegou a vez em que Anderson cortou relações com o festivo vovô. Os presentes eram realmente muito bons. Especialmente para a temporada de frio com o guarda-roupa pouco sortido e de escassas opções para arrefecer as temperaturas em queda do lado de fora. Porém, era difícil conviver com as piadinhas dos colegas de trabalho que testemunhavam os apuros que o sexagenário tarado impunha ao moço. (Não entendeu? Clique aqui.)

Visível era o alívio de Anderson após o basta. Trabalhava até melhor, comentou o colega da escrivaninha da frente. Pobre, velhinho. Perdera mais uma ovelhinha de seu rebanho. Mas não se deixava abalar. Logo retomaria a busca para substituir o rapaz que deixara espaço no estábulo. Partiu para cima de outros funcionários do periódico em que costuma publicar fotografias de amigos “pagantes” e figurinhas “mordíveis”. Os arredores da máquina de cafezinhos voltaram a se tornar território perigosos ao pessoal do sexo masculino.

E foi por lá que o trabalhador do recursos humanos sofreu um tremendo golpe. Quieto, enquanto misturava o leite em pó ao café, viu se aproximar o galante idoso. Tentou fazer de conta que sequer havia percebido o titio na área. Mas o outro não se fez de rogado. Elogiou os cachos capilares do guri. Corado, deu as costas como se nada tivesse ouvido. O festivo imaginava que daqueles arredores poderia angariar algo novo para sua festiva rotina. Tentou um alemão que toma conta das finanças da empresas também. O “pedaço de mau caminho” proferido não surtiu o efeito esperado.

E assim era a rotina do sexagenário quando ia levar suas anotações ao periódico dito maior do sul destas bandas. O velhinho atirava para todos os lados. Diziam até que o desejo era tanto que vez ou outra tascava palavras em mulheres. Respirar já bastava para entrar na mira. E foi numa dessas que Daniel foi surpreendido.

Num dos estreitos corredores do veículo, enquanto rumava para o setor em que um dos colegas de trabalho teria mais informações de um caso em que foi testemunha, deparou-se com o vovô de porte de uma maleta 007 que deveria esconder muita sordidez. O velhinho o encurralou e o interpelou. “Ei, menino. Posso te mostrar uma coisa?”, questionou.

O rapaz fez de conta que era surdo de nascença, mas pouco adiantou. O idoso de gravata borboleta foi logo arrumando o corpo para revelar algo. “Agora não posso. Estou com muita pressa, senhor”, quis despistar. E o vovô ficou por ali, de calças arriadas e choroso com mais uma tentativa frustrada.

terça-feira, 16 de junho de 2009

O desejo reprimido da Tia Soraia

Bastava que os primeiros relatos dos tempos passados ganhassem a conversa para saber que tivera uma infância repleta de acontecimentos marcantes. Passado mais de meio século desde seu nascimento, Tia Soraia ostenta histórias e tanto dos tempos de menina, no interior do interior catarina. Hoje a tia vive em metrópole, em outro estado. Mas jamais se furta de contar aos familiares e chegados a infância modesta. Porém sadia e divertida.

Das mais velhas de uma verdadeira ninhada, teve que aprender desde cedo a se virar sozinha. Enquanto a maioria das meninas da mesma idade voltavam seus pensamentos para as matinês, aos rapazes e domingueiras na praça, a jovem Soraia estudava com afinco, costurava para fora e ainda reforçava o minguado caixa com aulas de bandolim, instrumento de sonoridade muito apreciado naqueles idos. Assim, ficara sem tempo para curtir a tenra idade.

Mais velha, deixara a região natal e fora para outro lugar. Não apenas para cursar o ensino superior. Queria ver coisas que antes seu mundinho a privara. Entre aulas e trabalhos acadêmicos, encontra Antognio. Conheceram-se, pegaram nas respectivas mãos e, quando a relação estava encaminhada, trouxera o carcamano para aprovação do genitor. Contra a vontade do pai, escolhera um descendente de italianos para se esposar. Como a moça já tinha praticamente a vida feita, fez pouco caso. Deu a benção e chispou os pombinhos.

Unidos, não demorou para que Tia Soraia embuchasse. Os rebentos vieram um após o outro. Ela, uma de uma ninhada, teve de passar a zelar pela própria. Os filhos cresceram, ganharam o mundo e, enfim, Soraia pode realizar suas vontades mais secretas. Umas tantas um pouco descabidas, por conta da idade. Mas dava de ombros e decidiu que não poderia mais esperar por experimentar o que a vida tinha, ou teve, a lhe oferecer. Foi numa viagem com um casal de amigos que provara a cigarrilha psicotrópica.

Estavam numa simpática pousada de uma praia paranaense. Após o churrasquinho, enquanto lavava a louça com a amiga, sentiu um cheiro que lhe remetia à juventude e suas privações. Averiguou e encontrou marido e o da outra num fumacê. Sem pedir permissão, arrancou o objeto cilíndrico da mão do cara, cheirou e experimentou, após mais de 50 anos de aguardo. Na roda, quando o sujeito ao lado estendia a mão para dar continuidade ao ritual, era advertido com um tapa e um “espera que ainda não deu nada”.

Desistiram de Soraia e foram apreciar outro longe de seus olhares. A tia dera fim no fumacento e ficara chateada com a experiência. Solitária, da sacada olhava para o céu desiludida. Pensava que veria coisas absurdas, como descreviam os amigos de colégio, décadas atrás. Imaginava que se sentiria diferente. Que de nada adiantara aquele desejo reprimido de tantos anos. Foi quando avistou algo entre as estrelas e chamou a atenção dos demais. “Antognio, vem ver. Venha logo”, brandiu.

Na acreditava que aquilo não tinha sido previsto pelas estações espaciais do mundo. Vinte anos depois, o cometa Halley dera novo ar da graça. E foi dormir menos decepcionada já que o “barato” não batera nela.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Sexagenário faz sua segunda vítima

Essa cai bem para a época: amor em evidência, Dia dos Namorados.

Preocupado com que andava a escutar pelos corredores e ao redor da máquina de cafezinho da empresa, Lourival decidiu dar um basta na promíscua e furtiva relação (de troca) que mantinha com o galante sexagenário. Os presentes eram bons, é verdade. Mas sentia que sua honradez era dissipada dado os comentários que escutava aqui e ali. As declarações públicas estavam cada vez mais frequentes e incomodam o trabalhador de máquina fotográfica em punho.

Sem que os colegas percebessem, após uma das visitinhas do vovô taradão, deixou a sala e foi ao encontro do idoso. Em frente ao elevador, rapidamente, revelara o desconforto, agradecera os regalos e tocou o pé nas nádegas do festivo velhinho. Era aparente a tristeza do vôzinho nas semanas seguintes. Nas visitas ao periódico, falava ao telefone combinando festas e finais de semanas com quem costuma brindar com fotos estampadas. Falava em voz alta. Que era para o desgraçado ter a impressão de que o “não” nem o abalara.

Fiel seguidor das notícias que rondavam aquela relação um tanto bizarra, Anderson jamais imaginara um dia passar por situação semelhante. Não pense que foi ao acaso. Partiu dele o primeiro contato com o sexagenário. Estava de olho nos presentes que o idoso distribuía a quem “lhe fizesse bem”. Com orçamento curto e a temperatura a baixar, encarou a possibilidade de passar um inverno mais quente e confortável. Roupas novas.

Não demorou muito. Esses dias apareceu com uma bela jaqueta de couro. Feliz da vida. Se gosta dessa relação, não transparece. Mas é inegável que Anderson possui melhor habilidade de negociação que Lourival.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

O galante sexagenário

Se parasse para imaginar como seria sua vida dali 10 anos jamais teria lhe ocorrido encontrar aquela figura, pitorescamente, estranha. A vida de Lourival pode ser comparada à jornada do garoto Buscapé, aquele do aclamado filme de Fernando Meirelles, Cidade de Deus. De infância humilde, filho de uma antiga cidade litorânea catarinense, adentrou ao jornalismo por baixo. “Bem por baixo”. Entregava jornais diariamente nas residências e estabelecimentos comerciais na cidade natal e arredores. Sua persistência em se tornar fotógrafo foi recompensada com a titularidade do posto em um aclamado periódico do sul do mundo.

E foi por detrás das mesas da redação que se deparou com o caricato senhor. Passado dos sessenta, vestes bem diferentes das quais costuma estampar em suas colunas sociais e piadinhas tão antigas quanto o que ainda considera “um luxo”. Era o novo colunista do veículo em que Lourival trabalhava. No primeiro contato, amor à primeira vista. Pelo menos por parte do velhinho metido, com pinta de preferências sexuais distintas das do rapaz da máquina fotográfica.

Ainda nos primeiros dias, o safadinho velhote começara suas investidas. “Que belos olhos você tem, rapaz”. Foi a primeira dos lábios murchos e de baba melada. Daí por então, foram várias estocadas. “Pareces um ator da Globo”, “rapaz, mas que porte você tem”, “você é casado? Sua esposa deve ser uma mulher muito feliz”, cortejava o senhor que gostava de estampar casais cinqüentenários, políticos regionais e “bon vivants” em seu espaço diário, além de um dos netos uma vez por semana.

As cantadas explícitas do sexagenário chegavam a causar embaraço nos colegas. Lourival fazia de conta que estava com problemas auditivos. Dizem que certa vez o festivo senhor deixara escapar em voz alta um “ô, lá em casa”, seguido de um suspiro. Ninguém confirma.

As carícias verbais do idoso eram cada vez mais frequentes e contundentes. O fotógrafo se esquivava do jeito que podia. Forjava uma longa conversa com o colega da mesa ao lado para tentar se proteger das, já, súplicas do vovô. Porém, por ossos do ofício, foi designado para realizar uma cobertura fotográfica de um evento promovido pelo faceiro velhinho. Durante a festa, ao pé do ouvido, fazia pedidos indecorosos. Eram respondidos com risadas pelo puro Lourival. Naquela noite voltara para casa com belo par de tênis Phuna, um dos mais cobiçados pelos rapazes da mesma jovem idade.

Por diante, era um rol de agrados. Certa vez chegou ao trabalho com iPod novíssimo. Semanas depois aparecera de camisa nova, aparentemente cara. Era um festival de regalos que deixava os amigos desconfiados da origem, já que somente com o salário do periódico não seria possível adquirir tais e tantos produtos. Numa partida futebolística da empresa, Gráfica x Redação, chegara atrasado, porém animado. Na véspera fora cobrir um outro evento promovido pelo vovô. O par de chuteiras novos, caneleiras, meiões e camisa afirmavam o que então eram desconfianças. Lourival cedera aos apelos do senhor e recebia presentes em troca de “favores”.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Viagem no tempo

Moravam numa casa pequena, porém viviam rodeadas por um cenário que beirava o paradisíaco. Mas, Geralda e Marisa já estavam desgastadas pelo tempo. Pelas doenças também. Mãe e filha, viúva e solteirona, não arredavam pé dos limites domésticos. O convite a um passeio proporcionado por um belo dia de sol era menosprezado pela dupla. Geralda com 55 anos ficava deitada o dia inteiro. Mamãe Marisa, 77, atendia às manhas da filha e gostava de espiar a vizinhança pela janela.

Gerardinha, como se referiam jocosamente, era hipocondríaca. Algo ao extremo. De dar inveja e até causar espanto àqueles que tomam analgésico prevendo uma dor de cabeça nas próximas horas. Arrumava doenças inimagináveis. Dizem que uma vez Geralda alegou que era alvo de cupins que estariam roendo a mobília. A dedetização na casinha comprovara que os bichinhos jamais passaram por aquelas bandas. Crescia a suspeita de que as marcas no corpo eram fruto do enorme volume de remedinhos de ingeria.

“Gerarda” ficava na cama o dia inteiro. Levantava-se somente para ir ao banheiro. Isso quando nem se dava ao trabalho e fazia sobre o colchão. Não era das mais asseadas. Ao contrário da mãe. Dona Marisa, ainda que de forma estabanada, culpa da velhice que batera à porta e adentrara, à sua maneira dava conta dos serviços domésticos. Dava uma varridinha na casa, preparava as refeições e cuidava da filha. Só deixava o lar para ir ao supermercado ou à farmácia renovar o estoque da hipocondríaca e comprar as vitaminas que necessitava. Tomava cálcio para os ossos.

Ainda assim, mãe e filha viviam enclausuradas na casinha de 80 metros quadrados: sala/cozinha, banheiro e quarto. Não davam bola para a praia, a poucos metros, nos fundos da residência. Por conta disso, pareciam viver em um fuso horário diferente dos cidadãos comuns. Não era raro serem surpreendidas por visitas almoçando às dez da matina ou às cinco da tarde. O cotidiano irregular podia ser culpado pelas doenças de Geralda, que pareciam se agravar durante as madrugadas.

Dia desses, Dona Marisa passava o café durante um belo dia de verão. Intervalado por ais e uis, a filha repousava no quarto, com a janela fechada. Entre suspiros e aos gritos questionara a zelosa senhora: “Mamãe, que horas são?”. A velhinha direcionou o olhar ao relógio de ponteiros. O menor no oito, o maior próximo ao três. “São oito e quinze, minha filha”, respondeu. Segura que não estava suficientemente informada, Geralda deitada sobre a cama e aos berros, lança nova indagação para Marisa. “Da manhã ou da noite?”. A resposta demorou alguns instantes, mas saiu. “Pois eu não sei”, dando fim ao diálogo.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Dez é demais

A casa ficava no interior de uma pequena cidade. O provento do lar vinha da lavoura e dos trabalhos esporádicos que o patriarca fazia. Muitas bocas a alimentar. Para piorar, o calendário era de algum ano da década 1970. Era este era o cenário da família Cirilo, descendência italiana, que vivia por este Sul do mundo. Vivam dignamente. De acordo com suas precárias possibilidade.

Por causa das finanças domésticas curtíssimas, nem rádio possuíam. Fator que explica a “ninhada” de dona Mariazinha: 10 rebentos. Bastava ela olhar para as vestes íntimas do marido penduradas no varal que a barriga começava a crescer. Os moradores daquele vilarejo, inclusive, contam que a partir do sétimo filho, Mariazinha nem se dava ao trabalho. Acocorava-se, paria, dava palmadas na criança e a colocava para conviver com as demais. Ainda meio suja da bolsa amniótica.

Na velha casa de madeira haviam cinco cômodos: sala, cozinha e três quartos. Dos três, um para o casal, outro para a filharada e o terceiro era o sagrado quarto de visitas. Naquele tempo, as dependências sanitárias eram construídas separadamente. A patente, como chamavam aquelas casinhas, ficava uns 50 metros da casa. Nos fundos do quintal. A ninhada dormia toda em um único aposento. Não podiam invadir o espaço destinado a acomodar os eventuais visitantes.

Sem conjunto de prato e talheres para todos, Mariazinha servia as refeições aos rebentos em grandes bacias. Também poupava água para lavar a louça. Cada qual com a sua colher ao redor da gamela. Vez ou outra os irmãos se estranhavam. Aquele que preferia “reservar” uma coxa de frango, por exemplo, num piscar de olhos, numa distração, corria o risco de ficar sem. Ao redirecionar a visão para a refeição e não encontrar o que guardara para comer no fim, lançava-se contra o alvo de suas suspeitas. Ao redor da bacia, guerra declarada.

Numa fria noite de inverno, Celsinho, uns oito anos, acordara apurado. Precisava fazer um número dois. Fax ainda era algo remoto. Como de hábito, o mais novo acordava um irmão mais velho que dormia ao lado para acompanhar até aquela casinha. Era preciso esperar que tudo deixasse de ser necessidade para, aí sim, voltar ao sono. Embalados, alguns não cediam às súplicas e voltavam a dormir. Sozinho, o pequeno Celso deixou o quarto e voltou minutos depois, sem fazer barulho ou alarde.

Naquele fim de semana os Cirilos receberam a visita dos tios Adamastor e Emengarda. Adamastor era irmão do patriarca Elviro. Iriam pernoitar naquela casa apertada. O quarto destinado aos visitantes ganharia utilidade. À noite, após o jantar, as lamparinas se apagaram. Todos para a cama. Na calada da noite, incomodado. Seu Elviro entrara no quarto e acordara o casal anfitrião e hospitaleiro. Não conseguia pegar no sono devido ao forte mau cheiro no recinto. Desconfiava de um animal morto e da higiene dos parentes.

O dono da casa garantiu que eram “limpinhos”, mas, ao entrar no quarto reconheceu que odor realmente incomodava. Que era de tirar o sono. Vasculharam o cômodo tentando encontrar o gerador do forte cheio. Sem sucesso, deram a própria cama ainda quente aos visitantes e ficaram com o quarto das visitas. Nas primeiras horas do dia, com o quarto iluminado, certamente encontrariam algo que justificasse aquela verdadeira catinga.

Não apenas descobriram o motivo do fedor no quarto ao lado, como acharam a causa do apuro de Celsinho, há poucos dias. Entre as tralhas debaixo da cama, um guarda-chuva, ao ser aberto revelava um montinho estranho. Para não ter de atravessar o quintal solitário, o menino defecou dentro do guarda-chuva, fechou e o colocou de baixo da cama do cômodo de visitantes.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Papo de (não tão) macho

- Caralho! Caralho! – reclama o amigo ao volante

O trânsito era intenso e ele não conseguia cruzar a pista para seguir viagem. Por isso o reclame.

- Qual caralho? O meu ou o teu? – questionou o amigo, no banco ao lado, tentando descontrair o clima tenso.

O motorista riu.

O fluxo aliviou e ele finalmente atravessou a avenida. O carona retomou o assunto:

- Daqui do carro, sou mais o meu.

- Eu também.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Jeitinho brasileiro pelo mundo

Futebol, mulatas, samba ou um fio desencapado. O jeitinho brasuca de ser domina o globo. Não só por conta dos craques e pernas de pau que deixam a pátria amada em troca de doletas ou euros igualmente amados. O tal jeitinho não só faz com que os gringos encham nossos bonés e sacolinhas, como rendem histórias hilárias. Principalmente, os conterrâneos que partem em busca de novos horizontes em terra longínquas. Estes colecionam episódios divertidos. Fruto do achar que basta um toque verde e uma pitada de amarelo para que tudo dê certo.

A prima Carolina fora para Chicago ganhar uns trocados. Ela e o marido. Para cuidar do pequenino Pedro, na metade do dia ela zelava pelo filhote. A outra metade era papai o encarregado. Para economizar, compraram apenas um automóvel. Um buscava o outro no trabalho. O marido trabalhava em um restaurante e ela mal sabia o idioma local. Preocupada com a demora do amado, arrisca as primeiras palavras com uma funcionária em frente ao estabelecimento: “Plis, mai rãsban is rear? Re uorque in tchiquen”, disse Carol. A moça gargalhava, achando que a patroa achava o querido um frangalhão.

Pedrão crescera e fora para Londres. O contato familiar constante não permitiu a fluência no idioma do Tio Sam. Trabalhava, mantendo a escrita familiar, em um restaurante. Ao interpelar um cliente, deu boa noite e se pôs à disposição. “Where is the loo?”, perguntava o senhor. “A Lu não trabalha mais aqui, não. Arrumou um emprego que paga 5,90 libras na semana passada”, replicou. O consumidor queria apenas saber onde ficavam as instalações sanitárias da casa.

Cansada da capital inglesa, a tal Lu resolveu mudar de ares. Foi para Sydney, Austrália. Por lá os “amigos” de Osama também dominam o transporte em veículos de tons amarelados. Ao embarcar em um destes automóveis, a Luciana, provável nome da mocinha, não se surpreendeu com o cara de turbante atrás do volante, no seu segundo dia na nova cidade. Tentou puxar papo com o Saddam, também provável nomenclatura. O barbudo não entendia patavinas do idioma anglo-saxão. Apenas tomou conhecimento da descendência da freguesa. “Belé, belé, belé...”, esforçava-se Jarrah. Lu não entendeu que o cara falava sobre futebol, produto de exportação da terrinha dela.

A amiga da Lu, Ana, foi visitá-la no país além mar. Porém pouco sabia o idioma, também. Daquelas que fala o inglês de boteco, “book is on the table”. Não mais que isso. Mas estava disposta a aprender algo, arriscar pequenas conversações. Em um bar, sedenta, achou que seria simples pedir uma coca-cola para aplacar o calor. Chutou: “Tem coke?”. A atendente voltou com 10 latinhas e perguntou se era para viagem.

Pior foi o amigo da Ana, o Marcos. Riquinho, esperneou e o papai deu uma viagem a Disney em comemoração aos seus primeiros 15 anos de existência. Na excursão, fizera amizade com outros endinheirados meninos e meninas. Com o André, passeava por “gardens” e “centers” do mundo mágico criado pelo falecido Walt. Pelas tantas, lembrou-se dos familiares e adentrou na primeira loja de regalos que avistou. O atendente foi ao encontro do Marcos na tentativa de comercializar as bugigangas. “Gud praice. Dis is a ófer. Didi iu luque dis uon?”, interpelava. Marcos cochichou para o amiguinho: “Esse cara é um palhaço. Não percebe que não estou entendendo nada?”. O atendente notou e retrucou. “Palhaços todos os brasileiros são”, em bom português.

terça-feira, 31 de março de 2009

Abre a mão, Tião

Mão de vaca, mão fechada, pão-duro, murrinha, sovina, avaro. Todo mundo tem alguém na família ou conhece alguém que se encaixe perfeitamente no rol de adjetivos listados. Genealogicamente, sempre tem aquele tio que deveria até receber medalha pela façanha: cruzar o oceano com o torrão de sal na mão sem se dissolver. O Comitê Olímpico Internacional até poderia incluir a modalidade nas próximas Olimpíadas. Fica a sugestão.

O tio Sebastião era um exemplar típico da turma que pede para completar o tanque do automóvel com dois e cinquenta e sete (duas moedinhas de um centavo). Nem sempre Titio Tião foi assim. Trabalhador desde pequeno, aprendera dar valor ao fruto do suor da testa. Aprendera a se planejar, investir com segurança. Quando garoto trocava a bicicleta por uma melhor. Depois do casamento, adquiria imóveis.

Mas, lá pelas tantas, talvez por conta da velhice que batia a porta ou por temer não deixar um patrimônio aos filhos, incorporou a filosofia dos nadadores de punhos cerrados e pitada de sal na mão, bem fechada. Em casa, a caixa de leite longa vida tinha que durar. Achava um absurdo o preço do produto nas gôndolas supermercadistas. Economizava ao extremo. No fim da caixinha, virava-a esperando que as últimas gotas virassem um oceano dentro do copo. Na sequência, desfazia as dobras da embalagem a fim de mais um pouco do líquido alvo. Não contente, colocava um pouquinho d´água, agitava e derramava no recipiente em que iria beber. E, por fim, com a faca na mão, cortava a caixa e lambia seu interior. Ritual que causava embaraço aos familiares e divertia (ainda que de maneira contida) as visitas.

Obstinado em formar uma ampla biblioteca pessoal em que os grandes clássicos da literatura mundial não poderiam estar ausentes, pesquisara a melhor maneira (logo, a menos dispendiosa) de adquirir volumes. Encarava 15 horas dentro de um ônibus rumo à capital paulista para esbaldar-se nos sebos da Terra da Garoa. “É impressionante. Tem tudo. Um real por título”, gabava-se. Voltava com a valise de rodinhas repleta de novas aquisições.

Porém nenhum relato é tão forte quanto o seguinte. “Tirem as crianças da sala”, diria um engraçadinho. Faria uma viagem rumo às belezas naturais do Mercosul. Claro. Se fosse para fazer turismo, tinha que ser para ver a natureza. Porque não é preciso desembolsar um vintém sequer. Antes de embarcar em sua aventura, um amigo próximo alertara. “Abre a mão um pouquinho, Tião. Pelo menos para segurar o volante”. Pegou a estrada nas primeiras horas do dia.

Durante o trajeto, praças de pedágios indesviáveis. Sabia da adversidade. Havia planejado. Contara em quantas teria de passar. Por isso deixava os contados sete e sessenta e cinco separados em pequenos montes, que era para os funcionários da porteira não tentarem afanar os centavos alegando falta de troco. Rodados vários quilômetros, a manhã tomava corpo, o sol brilhava e Tio Tião tinha pela frente o último pedágio. Parou o veículo e escutou a mocinha. “Bom dia. Nove e trinta, senhor”.

Tião considerou aquilo ultrajante e chamou os tiras. Pobre moça. Queria apenas ser gentil com aquele senhor, informando a hora exata.

quinta-feira, 26 de março de 2009

“Tenho minhas fontes”

Nada causa mais furor no mundinho jornalístico quando alguém declara, em alto e bom som: “tenho minhas fontes”. Não é porque ter suas fontes seja algo semelhante a uma ferrari na garagem, uma casa de veraneio em Ibiza e um milhão debaixo do colchão. Não. É que a turminha fica curiosa para saber que raio de fonte é essa. Curiosidade, o combustível para o dia-a-dia dessa raça. Os alheios a patota vez ou outra tentam impressionar e soltam um “tenho meus contatos”. Não é a mesma coisa. “Coitado”, silenciosamente debocha o indivíduo da imprensa.

Eis que lá pelas tantas Carlos Alberto, raparigo que escreve o cotidiano de sua cidade querida em um periódico razoavelmente reconhecido, resolveu dar um basta na “solteirice crônica”, como diria uma colega de trabalho (má, aêêê...). Entre BBBs (Bar, Boate e Baladas), procurava por alguém para aquecer-lhe os pés nas frias noites de inverno que se avizinhava. Numa dessas, viu em uma outra colega de trabalho, outra, uma possibilidade latente. Bastou ele aproximar seus 90% que ela completara com os seus 10. Beijaram-se, confidenciaram e trocaram telefones. Com promessas mútuas de continuarem a se encontrar.

Um amigo de ambas as partes fizera a ponte, deixando as coisas ainda mais no meio. Como neste seleto grupo que bota o pão na mesa e paga a conta do bar por conta das notícias, não demorou muito para que aquilo tomasse proporções noticiosas. Ainda que de bastidores. Carlos Alberto encontrava um coleguinha em uma pauta e ele já soltava: “Então, tô sabendo”. Carlos fazia cara de dúvida e o sujeito já emendava um “tenho minhas fontes”. Ia a uma diligência e lá escutava um outro “tenho minhas fontes”. Coletivas para imprensa, não voltava sem menos de seis.

Em casa a mãe já soltara “tenho minhas fontes”. Umas doze vezes. Tentando manter-se apartado das fofoquinhas, arriscou a conduta de dar de ombros. E seguiu os encontros com a moça. Clima bom. Céu azul. Passadas umas duas encontradas, ainda que discretas, a expressão teimava a ser captada pelos tímpanos de Carlos. “Tá indo então? Tenho minhas fontes”, dizia um aqui. “Ah, tenho minhas fontes”, gabava-se um outro ali.

Os encontros continuaram e aquele “tenho minhas fontes” não parava de ecoar na cabeça do rapaz que queria nada mais que a tampa para sua panela. Chinelos Rider para seus pés cansados. Tampa de sua laranja. Feijão para seu arroz. Paul McCartney para seu John Lennon. A situação ficara preocupante. Agravou-se quando os “tenho minhas fontes” vinham em scraps no site de relacionamentos Orkut.

Cansado de ouvir cotidianamente “tenho minhas fontes”, resolveu dar um basta. Chegou a imaginar que, se tudo fosse muito de vento em popa e chegasse a esposar-se com a moça, na hora da entrega o convite tivesse que escutar mais um “tenho minhas fontes”. Não podia suportar aquilo. Sugeriu à querida o desquite. Citou o caso imaginado e ela entendeu. Amigavelmente, deixaram-se.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Miguelito, o anti-arcanjo

Cíntia Teixeira (As Imediatas)

Ele já chegou causando. Nem havia pisado na empresa e já provocava polêmica. Foi só dar uma olhadela básica no currículo extraordinário do moço para um funcionário mais esperto já apontar: picareta. Mas os chefes preferiram não concordar com o pré-conceito. E contrataram a polêmica criatura. Por mais de um ano, Pablo Miguelito "La Garantía Soy Yo" Herrera divertiu seus colegas de trabalho com as mais bizarras situações.

Para ele não havia tempo ruim. Qualquer terça-feira era boa para reunir a galera em suas luxuosas dependências, onde oferecia cerveja gelada, uísque importado, paella, tacos, guacamole e doses generosas dos produtos colombianos "tipo exportação". A vida era uma bela e colorida festa.

No Carnaval, marcou época em Shark city ao desfilar abraçado a sete vampiras traficantes lésbicas. Na campanha eleitoral, encheu a burra de money, money, money vendendo a alma a Deus, ao diabo, anjos, santos, íncubos, súcubos e quem mais se interessasse. Mas não votou: seu título é de Pedro Juan Caballero.

Virou figurinha fácil em lojas de móveis e eletrodomésticos, redecorando seu flat com o típico bom gosto paraguajo. LCD de 49 polegas, sofás de couro, chaise de camurça fina, tapetes, cortinas, esculturas. Obras de arte das mais variadas, luxo e ostentação.

Aos que o visitavam em suas dependências, tudo. Filés de linguado, camarões gigantes na manteiga, lagosta ao termidor, prosecco geladíssimo. E entre garfadas de risoto de açafrão e golinhos de vinho, estalava a linguinha marota e exibia fotos de sua intimidade com a adorável esposa. "Numa delas a bichinha abocanhava até o talo. Depois tentaram dizer que era um brinquedinho de borracha, mas, ah, meu bem, de pau eu entendo", revela D., testemunha das orgias gastro-sexuais de Miguelito.

Se com a esposa o sexo parecia tão ardente, sem ela o panorama era de filme pornô. Bastava a bichinha ir embora visitar familiares distantes e era aquele desfile de criaturas-que-fazem-da-calçada-local-de-trabalho.Os vizinhos, na (vã) tentativa de preservar a moral e os bons costumes, pediam para que ele não posasse tão ostensivamente, nu, balagandãs à mostra, apalpando coxas, bundas e peitos, em frente à janela com vista para o playground, às 11 da manhã. Para sua fúria, que jamais permitiu ser cerceado em suas vontades.

Só muito tempo depois foi que perceberam o rombo. Tentaram interceptá-lo, mas não houve tempo hábil. Háhá, amadores...

No meio da madrugada Miguelito evaporou com todos os seus recém-adquiridos pertences não-pagos. E dívidas, muitas. No rent-a-car, na Fatia de Baguete, lanchonete de Shark, na rotisserie, na locadora, na padaria, imobiliária... enfim, ainda gastou a última gota de sua lábia invejável para levar, na faixa, um equipamento fotográfico de última geração.

Pânico em Shark city.

A polícia foi acionada, autoridades comunicadas, mas já era tarde. Na parede do apartamento vazio, um recado desaforado dirigido a todos os seus "desafetos" - e escrito com o conteúdo da uma fralda bem cheia da filha mais nova.

segunda-feira, 16 de março de 2009

quinta-feira, 12 de março de 2009

Robalo sete pila

De tantos peixes no mar, sem motivos resolveram chamá-lo de Robalo. Era este o apelido e Adevair. Cordial, brincalhão e às vezes até com ar de um legítimo picareta, Robalo tinha em sua lista muito mais amigos que rivais. Andava na rua acenando para os conhecidos. Dizem que no último verão chegou a bronzear as axilas, tamanha quantidade de cumprimentos pela orla marítima e vias urbanas.

Representante comercial de uma famosa marca de chuveiros, Robalo geralmente tinha dificuldades na hora de conseguir clientes. O vulgo não passava uma boa impressão. O nome próprio também não era dos melhores. Colegas próximos dizem que chegou a tentar a troca judicialmente. Sem muito êxito, buscou na terapia desfazer o trauma desde os tempos de menino. Durante o período mais difícil, refugiava-se na bebida e psicotrópicos.

Acabou debandando para estes lados, sempre após o expediente. Claro. Outros coleguinhas afirmam que Adevair assemelha-se ao índio Paulinho Paiakan dopado em dias em que as “festinhas” iam até altas horas. Apesar de casado e dos dois filhos adolescentes, há os que pensam que joga n’outro time. Tudo por conta das piadinhas e poses de conotação sexual que incorpora de vez em sempre, para descontrair. Pura maledicência.

Pois que, um dia, a esposa e os guris viajaram. Uma tia distante adoecera. A mulher e os pimpolhos rumaram para o interior paranaense e ficariam uns dias fora, deixando o caminho livre para Robalo aprontar das suas. Talvez com intuito de recuperar um pouco da juventude, abreviada pelo trabalho pesado na loja de cadeados do pai. Bateu o ponto na firma, passou em casa, banhou-se, perfumou-se e foi para o barzinho atrás de “birinaites” e alucinógenos.

Jogou snooker, fumou não apenas o derby azul e otras cositas más e vagou pelas ruas da cidade em que mora. Uma dessas de Santa Catarina que é cortada pelo rio. Dirigindo a pampa parcialmente tunada, buscava um rabo de saia para arrefecer as saudades da esposa querida. Lá pelas tantas, viu um corpinho com um braço estendido à beira da via. “Não vai dar outra”, pensou. No papinho mais ou menos, percebeu que a garota estava longe de ser beatificada pelo papa.

Em meio aquele “opa, tudo bem”, “pois é...”, enquanto rodava pela cidade com o possante, viu que o fogo só seria apagado mediante pagamento. E antecipado. Sim, a moçinha que embarcara ganhava a vida com o corpinho. Fizera as contas e lembrara que havia gasto considerável parte do suado dinheirinho no bar. Com aditivos e fichas de bilhar. Arriscou: “Quanto?”. “Por menos de cinqüenta não dá”, respondeu a profissional. “Só tenho sete pila”, retrucou. “Com isso dá só um peitinho. E o esquerdo”, calculou ela. Pagou.

terça-feira, 3 de março de 2009

A lâmpada do gênio

Da barriga faz sua comissão de frente. Do sorriso fácil, um cartão de visitas. Das tiradas, sua marca registrada. Entre tantos atributos do moço, nem mais tão moço, é verdade, estes são os principais. A ordem é que pode inverter-se. Mesmo aposentado há alguns anos, Argeu mantém-se jovem. Faz duradoura amizade com os amigos dos filhos, aprecia o futebol via televisão ou indo aos estádios do sul catarina e continua a tornar seus copinhos. Ritos que fazem dele fanfarrão para alguns. Porém é considerado um personagem querido para esmagadora maioria.

Em um domingo, carnavalesco ou não, não abre mão do churrasquinho com os familiares ou amigos e toma das suas. Foi num desses, que exagerou um pouquinho. Nada que possa ser considerado como fato extraordinário. Além do papinho, Argeu era mais um degustador, nem sempre com tanta parcimônia. Reuniãozinha animada, conversas distintas e piadinhas regadas ao gelado e amarelado líquido, que naquele verão começara com o sistema na garrafa em que o rótulo indicava, em tons azulados, se a cerveja esta apta para o consumo. Gelou, acendeu. A esposa nem sempre aprovava os orgasmos etílicos do marido. Bastava uma risada um pouco mais alta que ela já fitava o nosso herói. “Me aguarde”, fulminava.

Lá pelas 15 horas, o contador de miradas anotava quinze. Antes que a barra pesasse para o seu lado, dispensou as crianças de casa, tomou um copo d’água e recostou-se na sua poltrona ultra-multi-tecno-hi-confort-plus. O plano estava elaborado: com um pouco de sossego, tiraria uma pestana relaxante que o credenciaria para umas rodadas de drinques logo mais. Com a residência vazia e a televisão a ninar o sono, adormeceu.

Sabia que aquela atitude era quase contra o seu gosto. Como enquanto acordado, seu sono também era divertido. Meio sentado, meio deitado, repousava as duas mãos sobre a métrica e simpática pança. Balbuciava uma coisa ou outra, como que era de seu feitio. Entre roncos estrondosos, aproveitava as unhas afiadas como a de um canário belga para “espalitar” os dentes. Certo ponto acordou sedento e curioso. Questionava se “a lampadazinha já acendeu?”. Estava preocupadíssimo com as Skols que repousavam no freezer.

"Hora de faturar" ou "Reclames"


sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Lembranças de Ron

Não que fosse um sujeito mal humorado ou desgostoso com a vida. Pelo contrário. Jamais negava um sorriso. Contava piada ou caso pitoresco sempre que podia ou quando o momento pedia. Salvo exceções. Porém, depois daquele Carnaval, as atitudes de Ronnie tornaram-se mais carregadas de alegria. Em maioria exageradas e inapropriadas.

Vê algo, recorda-se e solta uma risada. Indecifrável para quem está ao entorno. São as memórias. Não tão memoráveis assim. Ron, para os amigos, desde a quarta-feira de cinzas apresenta-se desta maneira.

Para se ter uma noção. Viu uma nota de cinco mangos amassada sobre a mesa e deu uma longa gargalhada. Lembrara-se de que adquiria as cervejas de duas em duas. “Uma é três, duas cinco”, ecoava a voz de ambulantes em sua cabeça. Tomava as duas, sozinho. Revelador.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O pé direito de Ritinha

Ela se acha moderna. Ritinha tem convicção de que as coisas que gosta a fazem uma mulher do Século 21. Tem os badulaques da moda. Tigrados, zebrados e onçados. É adoradora de reggae. Mas não abre mão de um pagodinho aos finais de semana. Gosta de esportes e faz ao que está ao seu alcance para manter-se “comestível” aos olhos masculinos. Não se faz de pudica e nos bailinhos aprecia, nem sempre com tanta moderação. É solteira por opção. Na lista de predileções também consta os lençóis de camas alheias. Com os atributos em dia, contava os dias para mais um Carnaval.

Na quarta-feira, antes dos dias de folia do momo, durante uma revigorante partida de voleibol com as amiguinhas, ao ir buscar uma bola rebatida, deu uma topada que deixara o tornozelo em frangalhos. Foi levada às pressas para um pronto socorro. O médico enfaixou, passou a receita e pediu repouso. “Sem Carnaval, doutor?”, questionou esperançosa. O carinha de branco assentiu. Voltou para a residência de verão lagunense que alugara, com outras cinco amigas, cabisbaixa. “Seria o fim? Um investimento de todo ano jogado fora?”, refletia.

Chegou a fatídica sexta-feira. Data da estréia. Ela lá olhando para latas e para amigas já em ritmo de festa. Não se conteve. Botou uma calça para cobrir o curativo, segurou firme a lata, olhou para a porta, deu um golaço, pegou outra latinha, deu um gole menor, e partiu. “Seja o que Deus quiser”, dizia para si mesmo enquanto caminhava do apêzinho nos Molhes até a avenida, no Mar Grosso. Com carro alegórico estacionado, sorvia o líquido e começava a esquecer das recomendações do doutor. “Que se foda”, falou em alto tom, lá pelas tantas.

Mamadinha, Ritinha colou os olhos no carinha com sotaque carioca. O garotão seria o contemplado daquela primeira noite. O carinha sacou, colou e faturou. Entre goles e súplicas do mau intencionado moçoilo, foram ao hotel curtir a coleção de sungas e gravatas borboletas que ele havia trazido para os dias de folia. Dali por diante, os relatos restringe-se a uivos e gemidos. Indecifráveis. Aninhou-se por lá mesmo.

Acordou às 11 horas. Com gosto de guarda-chuva na boca e assada. Vestiu-se e partiu trôpega. Não sabia se era a fratura a lhe incomodar ou cabeça a pesar. Durante a longa caminhada, todos apontavam para Ritinha, decifrando suas ações anteriores. Com um leve aceno e a mão espalmada no ar, pedia que parassem. Ajeitava-se e levantava a barra da calça, mostrando as ataduras. Assim fazia a cada 10 passos. Meia-hora depois, próximo do apê, já de saco-cheio, um menino repete a cena. Levantou o dedo médio da mão direita e balbuciou algo. Apesar da lata que segurava com a canhota, ninguém acreditava que o passo desajeitado era fruto do acidente, três dias atrás a estas alturas.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Novo endereço

Todas as aventuras documentadas durante o Carnaval-09 passam para novo endereço. No www.residenciamilanez.blogspot.com o mundo acompanhara o melhor do sul mundial.

Com a medida, o www.bemsacada.blogspot.com mantém seu projeto original e entornará outros fatos.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Contos carnavalescos

O Carnaval bateu a porta. Foi recebido com uma lata de cerveja gelada e uma máscara de Batman. Enfim chegou a data mais esperadas do ano para muitos. Uns caem na farra, e às vezes no chão, outros caem na cama, querendo sossego. Independente do rumo, os dias de folia reservam episódios pitorescos, daqueles que voltam às conversas sempre que uma ou duas testemunhas se encontram lá pelos dias de fevereiro. Vejamos algumas.

Velha molhadinha
O sol dera o ar de sua graça a poucos minutos. Eles ainda estavam lá. Juquinha e Paulinho empunhavam a sabe lá qual número da lata do suco de cevada. Era um Carnaval animado. Tanto quanto aos nossos foliões. A padaria já abrira suas portas e recebia uma considerável clientela. Bem heterogênea. Velhinhos com pães frescos e jornal do dia. Festeiros para fazer uma boquinha antes do irem para UTI. E uma parcela mínima atrás de mais combustível da alegria. Neste último perfil estavam nossos caricatos heróis. Resolveram inovar. Com os poucos trocados, adquiram uma garrafa do melhor e mais barato champagne. Saíram pelas ruas a bebericar a Sidra Cereser, sabor maçã. Num pique distinto da maioria, indignavam-se com a terceira idade a desfilar sem fantasias, bumbum de fora ou carro alegórico. Uma velha revolta, recriminou com olhos fulminantes a atitude dos dois. Foi “premiada” com um banho do comemorativo líquido, bem como a cadelinha que levara para passear. Chamada Fifi, a cadela da tia idosa.

Churrasqueira pública
Em época nem tão longínqua, a avenida era liberada para carros nem tão alegóricos assim. A turma passava o boné e um era encarregado de ir até o ferro-velho adquirir o melhor modelo que a verba permitisse. A alegoria propiciava as mais diversas performances e era instrumento para a liberação da criatividade. Uns bem-humorados, outros com enfeites caprichados e, ainda, alguns não tão bem aproveitados. Tudo corria ao redor daqueles ex-possantes. Porém todos acabam da mesma maneira. Eram queimados em praça pública. Obrigando os Bombeiros colocarem seus blocos para desfilar. Num deles, já em chamas, uma patotinha. Toninho e Juquinha se esbaldavam. Pulavam em cima da máquina e contemplavam o fogo. Faminto, Manoelzinho, amiguinho da dupla, preferia ficar de fora, porém próximo. Aproveitava a brasa para manter seu crepe aquecido, entre mordidas e longos goles de cerveja.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Caso Pitiça – (im)prováveis teses

Alto, magro, gordo ou baixinho. Óculos de grau ou escuros. Careca ou com rabo de cavalo. Com joanete ou pé chato. O imaginário coletivo tenta perfilar Paulo Pitiça. Aquele da cagada. “Bota cagada nisso”. Porém, mais do que saber como é a personagem, os debates se acaloram quando o tema é o que teria feito o tal Pitiça às vésperas do Carnaval de 2008. Como as teorias conspiratórias, de que o verdadeiro beatle Paul McCartney morreu em 77, de que a guerra contra o Saddam foi encenada no deserto do Saara (e com ajuda de computação gráfica) e de que os anões de jardim um dia quebrarão o gesso e terão vida própria, Paulo P., de Pitiça, adentrou ao rol conspiratório. Vejamos algumas teses.

Peruca de touro 1
Paulo, como era chamado pelos colegas do departamento de Vigilância Sanitária da cidade, sempre manteve uma postura correta, de acordo com as exigências de chefia lhe requeriam. Sempre na linha. Cabelos pentados, colarinho engomado e gravatas burocraticamente sóbrias. Não era muito de sorrisos, mas não chegava a ser considerado mal-humorado. Depois de 30 anos daquela vidinha casa-trabalho-casa-futebol com os amigos na quarta-feira ou sair para almoçar fora todos os domingos, passou a detestar tudo que construíra ao longo das mais de três décadas com a esposa. Fugiu com a secretária, Ritinha (Furacão, para a turma da repartição) e deixou a esposa, o apartamento e dois filhos já crescidos.

Virou bicha
Quando chegou aos 50 sabia que não poderia mais protelar. Precisava fazer o exame de toque na próstata. Foi ao doutor, escolhido a dedo, pelo critério o menor. Na salinha, arreganhou-se e gostou. Dali pelos dias a seguir, praticava seus atos furtivamente, cada vez mais freqüentes. Prestes virar tema de comentários maldosos pela cidadezinha, a mulher um dia chegou em casa e encontrou-o “engatado” no vizinho do apê de cima. Saiu do armário, maquiado e aliviado.

Peruca de touro 2
A vida parecia que não lhe reservaria grandes emoções por diante. Casado há anos, com os filhos crescidos e contando os meses para vestir o uniforme do time dos aposentados, o pijamão, Pitiça seguia sua sina. Não se sentia entediado. Era feliz àquela maneira. Em sua cabeça repousava a certeza de que fizera tudo ao seu alcance. Dançou, beijou, deixou herdeiros, nadou no mar, comprou uma casa na cidade e outra na praia quando queria ou podia. Às vésperas do Carnaval, em que iria encarar os dois grossos volumes de Os Irmãos Karamazov, de Fiodor Dostoievski (o Dosta, segundo Mário Prata), descobriu que o mar de rosas que imaginara era revolto. “Desculpa, fui embora com o carinha que limpa a piscina. Volto em duas semanas para pegar minhas coisas”, dizia o bilhete da esposa.

“Dormi na praça”
Adorador dos festejos carnavalescos, Pitiça estava ansioso pela chegada dos dias de muita folia e cerveja gelada. Sabia que o Carnaval estava perto. Pois, mesmo assim, não se conteve e saiu em plena quarta-feira, véspera das festas, e enxugou todas. De um bar para o outro, trôpego, caiu na calçada e por ali dormiu. Voltou ao lar noutro dia, lá pelas 10, com cheiro forte no corpo, cara de quem dormiu de calça jeans e o cabelo alourado, fruto da brincadeira de crianças que jogaram água oxigenada em seu cocuruto enquanto estava desacordado. A mulher o mandou embora e foi aplaudida pela vizinhança.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A arte imita a vida

Eternizado pelo homem-palco ainda nesta década, subir ao palco em eventos formaturescos tornou-se destaque nas conversas nos dias seguintes aos bailinhos comemorativos no sul barriga verde. Uns com maior número de participação. Vulgo Bicão no topo da lista. Outros têm estatísticas mais discretas. Não importa o embalo do conjunto, o que vale é estar lá. O importante é participar, parodiando o papai-Gelol.

Há cinco anos, uma festa tremenda. Evento formaturesco e jornalístico, Clube 87 de Julho, animação, descontração e palco de fácil acesso. Está formatado o cenário para que nosso herói, Charles Uésle, viva seu momento cinematográfico. Charlinho para os amigos, Charlie para os anglo-saxões, jamais escondeu sua preferência por eventos do gênero. Sempre que pôde encarou a opção com umas das melhores alternativas, com ou sem convite. Um entusiasta.

Estava ele enfrente ao palco, não em cima. Ele não é muito disso, mas não recrimina os adeptos da prática. Animado, cervejinha na mão, curtindo com os colegas aquele clima festivo pela conclusão do ensino superior de qualquer um. Sobre o tablado destinado aos membros do conjunto musical, com outros foliões estava ela. Morena, alta, linda, expansiva, uma rosa entre os dedos e à procura de um amor hollywoodiano. A marmanjada de olho em Marcinha. Marcinha de olho no futuro marido.

Terminada a canção. A moreninha das grandes (fita métrica na vertical, não na horizontal) fita seus fãs e joga a flor para o ar, para alto, na direção das dezenas de pretendentes. Nosso herói, Uésle, com a ajuda de sua estatura privilegiada, toma a rosa em suas mãos. Mal sabia, estava marcado. Marcinha desce do palquinho e caminha na direção de Uésle. Olhos nos olhos. Ela para em frente do catador de flores, sorri e cola seus lábios no dele. E nunca mais se falaram.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Regressiva

Cerveja. Papo. Dança do Créu. Tambor. Carro alegórico. Churrasco. Gelo. Banho de cerveja. Gargalhadas. Lampadazinha azul. Acordar ainda bêbado. Cerveja. Pegar a liderança. Água. Peró no mucho. Avenida. Balde. Carreteiro. Cerveja. Banho morno. Banho de mar. Paulistas. Cariocas. Cerveja. Boninho e Big Boss. Revezamento de leito. Bilhete pela porta. Douglas vestido de mulher. Bob Esponja. De Batman. Cerveja. “Hankiei”. “Bebi de mais”. Caipirinha. Uisquizinho da Bel. Queimada de largada. Cerveja. Calor. Muito calor. Se dar bem. Cair no chão. Achar o amor da vida. Achar vários amores da vida. Todo dia. Canja às 2. Canja às 8. Champanhe. Cerveja. Pão novo. “A Rafa?”. Deitar na calçada. Fazer xixi na rua. No beco. Na praia. No lar. E no bar. Não vi mais. Me perdi. Cerveja. “É hoje”. Pombo. Camarão. Funk. “Traz mais uma”. Cerveja.

O Carnaval tá quase.

PS: Faltou? Comente.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Ueca, 3 litros

Durante o verão, com ênfase no Carnaval, o assunto vem à tona. É discutido amplamente, porém sua origem é quase um tabu, mantido em sigilo absoluto. Do conhecimento de dois ou três. Prestes a virar uma lenda urbana. É notório que Raquel Rabelo tem uma capacidade de ingestão de líquidos superior à maioria. Menina acima da média, exclamam alguns. Quem conhece sabe da fama da moça: perna oca. Também citada como “perna ueca”, após a passagem de desbravadores espanhóis, em missão de paz, pelo litoral do sul do mundo. Basta uma mini-reunião etílica para que o vulgo seja entoado em sua homenagem.

Quem tem uma convivência mais aproximada com Raquel estima que a tal perna oca comporte em torno de três litros do drinque que vier: scotch, conhaque, capirinha, vodka, gin e cerveja. Principalmente cerveja. Sem dó, ela derruba copos e latas. Com a vantagem, enquanto uns caem por terra, Raquel sobra faceira. No máximo uma tonturinha.

O mito será revelado. Ainda pequenina, ali pelos seus seis ou sete anos, Raquelzinha foi vítima de um acidente doméstico que para alguns poderia ser considerado uma tragédia, irreversível. Fatalidade mesmo. Arteira, escalou uma grande estante em busca de uma garrafa com líquido com uma tonalidade jamais vista. Era um licor de amoras. Sentia-se atraída por aquele róseo e avermelhado. Um dia desvencilhou-se dos olhares atentos da mamãe e foi em busca do objeto de seus desejos. Faltando um palmo para botar os dedinhos na vidro, foi surpreendida quando o caminhão de gás sonorizava a 9ª Sinfonia de Beethoven. Assustada, perdeu o controle e foi ao chão, com o móvel caindo sobre sua perna direita.

Os meses seguintes foram de tristeza para a juvenil. No leito do hospital e em casa, pensava como driblaria seu destino com uma só uma perna. Tentou habituar-se com a prótese e teve êxito. Parecia ter nascido com ela, parecia que sempre esteve ali. Ao cruzar a puberdade e chegar à idade dos bailinhos e domingueiras, viu a oportunidade. Grande idéia. Foi ao marceneiro e pediu uma nova, já de acordo com seu tamanho, uma vez que crescera e chegara aos 2,07 metros de altura. Porém na engenharia do membro constava uma observação revolucionária, quase. A perna nova não poderia ser maciça ou preenchida.

Dali por diante se destacava entre as amigas e coleguinhas. Nem tanto pela sua habilidade de escolher companhias do sexo oposto. Mas pela capacidade absorção de líquidos. Nos primeiros dias de fevereiro os mais íntimos têm que demovê-la da idéia de procurar um cirurgião para amputar a perna esquerda por causa do Carnaval.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Está no sangue (ou “A herança”) – parte 1

Os mesmos genes, o tipo sanguineo, o RH, o sobrenome. Fatores propagados de geração para geração, que vão se alongando na árvore genealógica somam-se a outros. Porém, sempre lá. Costumes e hábitos parecem também correr pelas veias de indivíduos da mesma família. Não há outra justificativa para o que acomete os Cardoso quando desfrutam das benesses e da animação da residência de verão Milanez e sua consagrada sacada. (Aliás, da sacada a inspiração para o nome deste esforçado bloguinho).
Os moços atendem por “os meninos da Darlete”. Inclusive. Pois eles, estes meninos,em diferentes anos e épocas seguem com bravura e coragem a manter vivas as tradições familiares até hoje.

1701 (incerto)
Foi na virada do século XVI para o XVII, em um ano incerto, que a história dos Cardoso foi prefaciada. Ao avistar as formas rochosas e arenosas do Morro dos Conventos, em Araranguá, foi dada a largada aos festejos após quase três meses no mar e à sina da família. Embarcado em uma nau vinda da Itália para o Brasil, com escala em Cabo Verde, o velho Gianluigi Cardoso começou a se umedecer de rum e losna, daquelas que chegam a ser curtidas com cobras. Vivas. Copinho cheio era copinho emborcado. Um a um, intervalado apenas por generosas cafungadas de rapé, Gianluigi nem viu quando sua alma deixou o corpo e passou a vagar sem rumo pelas terras araranguaenses. Escapando de canibais à espreita, refugiou-se em uma caverna e, logo após, rolou uma enorme pedra para bloquear a entrada. Dizem os antepassados que por lá ficou. Durante uns três anos.


1854
Pompeu Cardoso escreveu um capítulo pitoresco da sina da família. Foi o precoce. Na extinta cidade de Sementes do Paraná, onde hoje está o município de Grão-Pará, Pompeu passava as tardes a brincar com seu pião pelas ruas das cercanias em que morava com os pais e mais sete irmãos, todos mais velhos. Pompinho, como era chamado pelos habitantes da casa, não via a hora de chegar à maioridade para poder voltar tarde da noite com aquele cheiro forte que se assemelhava à querosene, muito utilizada na época para iluminação de vias públicas. Ele queria ser como os irmãos. Queria ir dormir alegre, falando coisas estranhas, porém divertidas. Resolveu se posicionar próximo às janelas dos bares do vilarejo. Bem abaixo da abertura ficava com seu surrado pião, porém mais atento ao que era proferido de dentro do estabelecimento etílico. Reza a lenda que, depois de muito ensaio, estava craque. Bastava um gritar “um gole pro santo”, que o garoto, como um cão faminto, abria o bocão a pescar a aguardente que vinha de dentro endereçado à calçada. Depois de um dia de uma grande tarrafada, quiçá sua maior até então, trancou-se na casolinha utilizada para as necessidades. Deram falta do pequeno Pompeu, o Pompinho, 15 dias depois. Os pais acharam que o menino havia partido com um circo mambembe que se apresentou na cidade na época. A tradição do gole pro santo ainda existe, porém não é mais tão religiosa como antigamente.

Está no sangue (ou “A herança”) – parte 2

1974
Esta é a história de Aristeu Cardoso. Ainda vivo e lúcido, é conhecido pela turma do dominó como seu Ari. Aventureiro, nos fins de semana gostava de passear em outras freguesias com sua motocicleta pelo litoral sul de Santa Catarina. Na mochila às costas cabia pouco, porém o necessário. Barraca, cuecas limpas e umas quatro ou cinco garrafas da extinta cerveja Malt 90. Sem luxo, às vezes variava. Ia de Schincariol, hoje Nova Schin. De Sombrio rumou com sua moto para a Praia do Camacho, em Jaguaruna, outrora uma pequena vila com dois ou três veranistas durante a alta temporada. Chegou na beira da praia, estrategicamente armou a barraca próximo à uma bodega e abriu a primeira de muitas. Dizem alguns da comunidade de pescadores da região que faltou cerveja naquela noite. Ao sol querer começar a raiar, encharcado até a alma, Ari foi para sua barraca. O pior ocorreu. Uma grande tormenta atingiu aquela pacata praia. Acordou 19 horas depois. Estava em Bombinhas.


2005
Esta é uma história carnavalesca e aconteceu com Lindomar Cardoso. Os amigos o chamavam de Lindo. Beleza não era muito o seu forte. Mas de papo ele era bom. Ô, se era. Daqui por diante a sina dos Cardoso funde-se à existência da residência de verão Milanez. Que dobradinha! Marchinhas a ecoar pelas ruas do Mar Grosso lá foi a turma desfrutar dos dias de folia do momo. Lindinho, como só sua mãe chamava, junto. O clima abafado era um convite para longos goles da mais gelada que aparecesse pela frente. E assim foi o Cardoso, enchendo sua lata até que, completamente mamado, desgarrou-se do grupinho e seguiu a festejar o Carnaval. Passadas 22 horas da última vez em que foi avistado, os amigos estavam preocupados com o sumiço do moço na faixa dos 20 anos. Bastou o rapazinho botar parte do cuco para dentro da residência, espiando pela fresta da porta para Argeu, sempre ele, içar o torrado folião. Transtornado, queria retornar às balburdias e latas, impedido pelo seu salvador com um convite para um papinho. Sobre um balanço das festividades até o momento. Os ponteiros deram voltas enquanto conversavam e Lindo foi vencido pelo cansaço. Sua última cartada antes do sono profundo, uma visitinha ao banheiro. No recinto tudo ficou negro e as paredes se fecharam. Por lá ficou 37 horas. Só foi resgatado com um bilhete com súplicas de Texugo, seu fiel escudeiro. “Tá vivo?”, questionava o singelo e providencial recado.


2009
O último capítulo escrito até então. As obrigações profissionais e as responsabilidades de rapaz crescido fatalmente limitaram a convivência de José Cardoso junto aos animados da sacada. Pois que, num sábado ensolarado, encontrou uma enorme brecha em sua agenda e partiu para um fim de semana na residência Milanez. Emocionado em poder voltar àquele ambiente mágico e em que os problemas parecem sumir entre goles e mais goles, posicionou-se ao redor da mesa, calibrou a mão e deu início aos trabalhos. Com os olhos banhados em lágrimas descia garrafas goela abaixo e planejava junto dos comparsas as próximas horas de lazer. Sem lágrimas e já com as pupilas à brilhar foram a uma animada festinha à beira mar. Embriagado pelos festejos, embriagou-se. A volta ao porto seguro foi tortuosa. A cada dois passos, parava e mirava o caminho à sua frente. Após muito esforço instalou-se e foi ouvir a partida entre Ferroviário e Carlos Renaux pelo rádio. Sonolento e entusiasta das tradições dos Cardoso, partiu para o sanitário. Por lá ficou cerca de 12 horas, donde saiu pronto para mais uma. Noite de sono.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Não sei o que você fez às vésperas do Carnaval de 2008

Sol lá em cima tostando a pele de veranistas e transeuntes, barriga cuidadosamente ajeitada sobre o calção, sandálias havaianas 42 e as unhas de canário belga afiadas. Pela orla marítima da Praia do Mar Grosso, lá ia seu Argeu, aproveitando a sexta-feira ensolarada em solo lagunense, há poucas horas dos festejos carnavalescos. Praticando sua não tão freqüente caminhada e a olhar os corpinhos estendidos na areia. Passada acertada, concentrada, mas a cabeça longe. Estava a planejar toda a logística que um Carnaval na residência Milanez demanda. Cardápios, caixas de cerveja, distribuição dos quartos e leitos. E aperta o passo.

Ainda nos primeiros metros da primeira etapa, intrigou-se com um sujeitinho e sua esposa a prestar atenção nas suas não tão largas passadas sobre a areia umedecida pelas águas do Oceano Atlântico. Deu de ombros e voltou seus pensamentos ao vai e vem das pernas e às geladas a gelar. Prestes a completar a etapa derradeira de seu exercício matinal, passa pelo mesmo ponto (de interrogação). Não resiste e cede aos olhares, antes que a pulga lhe chegue a arrancar um pedaço da orelha. Puxa um papinho sem-vergonha, entretanto animado. “Opa, tudo bom?”, "Tudo”, “Tá quente...”, “Ô! Da até de pelar um porco”.

Silêncio, enquanto os (quem sabe?) velhos amigos de longa data se estudam, como lutadores de boxe nos primeiros momentos do Round 1. A mulher do outro cutuca, ele encara o nosso personagem mais querido do Sul do mundo e tasca: “Pois então, Balofa?”. Argeu franze a testa e arqueia as sobrancelhas, surpreendido com o apelido inesperado, mas sem deixar transparecer estranheza. O tio da sunga vermelha não percebe, e emenda: “Que cagada a da Paulo Pitiça, né?”.

Perplexo, com testa ainda mais enrugada e a sobrancelha na altura do couro capilar da cabeça agrisalhada. Sem informações sobre o cidadão, nosso personagem achou por bem utilizar da experiência que os anos lhe deram: “Olha... (escolheu bem as palavras) bota cagada nisso!” e foi para casa, igualmente pensativo, porém sobre em um novo motivo.

E o Carnaval lagunense de 2008 não foi como o de anos anteriores. Perdeu a animação do contagiante Paulo Pitiça.