sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Lembrança senil

Com cabelos branquinhos e passos curtos e lentos, recém saídas de um consultório médico, três senhorinhas andam pelas calçadas da cidade. Na tarde ensolarada, porém gelada, discutem sobre os remédios receitados pelo médico. Uma palavra por passada. Tomam todo o passeio, lado a lado, atrapalhando os bem mais apressados.

- Acho melhor anotar o nome do remédio para não esquecer - sugere uma delas.

- É mesmo. Alguma de vocês tem uma... Como é mesmo? Aquele objeto para escrever. Tava na ponta da língua - diz outra.

- Uma pena! - arrisca a mais saudosa.

- Não. Uma que inventaram depois. Qual era o nome? - responde a esquecida.

- Acho que a senhora se refere à caneta - comenta a terceira.

- Isso mesmo, como poderia ter esquecido. Caneta. Alguém tem uma na bolsa?

Uma delas para e abre a bolsa. Bota os óculos e passa a vasculhar o interior. Enquanto isso, um ciclista desvia com tudo para a estrada e é saudado por buzinadas do motorista que quase o atropelara.

- Como esse pessoal anda mal educado, vou te contar - resmunga uma avozinha, olhando ao redor.

A grisalhinha toma a caneta e um papel - pronta para escrever o nome do medicamento.

- Qual era o nome do remédio, mesmo? O médico disse que era muito bom para a memória - tenta lembrar.

- Pois agora - fala outra com semblante de leve desespero.

- Memoriol? – esforça-se a outra.

- Acho que é esse.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Sapiência infantil

Como era sabido o pequeno Heraldinho. Com apenas três anos desfiava pronúncias perfeitas e concordâncias idem. Até arriscava alguns vocábulos em inglês. Era o orgulho de titias e vovós. Babona, a mãe alçara o rapazinho à condição de gênio. Os mais próximos suplicavam para que dona Margarete não queimasse etapas e o colocasse na universidade antes dos 10.

Tinha uma memória surpreendente. Heraldo aprendia rápido. Se avistava um adulto com um livro grosso e cheio de mapas, perguntava: “O que você está lendo?”. Genericamente, o mais velho dizia que folheava um livro. “Não, é um atlas”, respondia de bate pronto e dava as costas, desconcertando o cidadão sentado ao sofá.

Não pense que Heraldinho gostava apenas de coletar informação e esfregá-la na cara dos com mais idade ao redor. Como qualquer criança, adorava brincar. E como brincava. Arrastava um tio desavisado e escravizava o indivíduo com súplicas para que a diversão não fosse abreviada. Pedidos prontamente atendidos.

Dia desses, envolto de amigas da mãe e titias, exibia um belo traje de profissional da medicina, da área da saúde. Com jaleco e um estetoscópio de plástico ao redor do pescoço, aplicava injeções e colocava o termômetro sob as axilas de quem passava. Talvez por desconhecer as proezas do menininho, um desavisado passou próximo e tentou fazer graça. “Tás que é um rei. Hein, Heraldinho?”. O pequeno não titubeou. “Não, estou de médico. Doutor Heraldo. Em que posso ser útil?”.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Coisas de Candinha

Dona Candinha parecia ser uma daquelas velhinhas fofinhas e cheio de manias estranhas depois que a porta de frente da casa fecha. E era mesmo. Na mais tenra idade botou no mundo os filhos, deixou o marido e foi trabalhar numa capital. Para quem não conhece seus anos que não voltam mais, e há tempos já se foram, conta que fora diplomata, que falava com gente de todo o mundo. Na verdade, era recepcionista de uma importadora na década de 1970. Eu disse que era fofinha e estranha. Avisei.

Cansada de tanta diplomacia, assim que pode levou o papel no INSS e resolveu, definitivamente, que daria férias aos seus pés cansados. Já viúva, procurou um bom partido e sossegou o facho. Num dia desses de lá para cá, seu mundo quase virou quando viveu a iminência de ser uma nova rica, fruto de um sorteio de uma das loterias nacionais. Naquela noite nem dormira, pensando em quantos e como iria ajudar.

Na manhã seguinte, Candinha bateu tamanca no calçadão. Ralhou com a mocinha da casa lotérica. Cismava que as seis dezenas estavam erradas. Que as da folhinha em mãos eram as que davam direito à bolada. Demorou algumas horas para se dar conta de que alguém tinha anotado seus números e passado como as sorteadas. Voltou para casa tão pobre quanto antes.

Pois um dia, o marido passou mal. Voltou para casa numa cadeira de rodas e meses depois mudou seu endereço para o céu. Deixou a cama e a casa da Candinha vazia. Luto finito, foi a um desses encontros de idosos. Insistência de uma amiga, “aquela velha que tem cheiro de casa suja”, referia-se enquanto a outra não estava por perto.

No salão, acomodava a taróba na cadeira e de lá saia só quando a última seresta soasse. Foi na semana seguinte, outra vez. Viu o baile todo passar em frente ao seu nariz e se levantou apenas para fazer um xixinho. E assim eram os bailinhos dali por diante. Familiarizados com a figura de Candinha, os velhinhos tentavam tirar a senhora para bailar. Eram todos repelidos. Os mais insistentes tomavam pisão no pé.

Ao final de mais um evento do gênero, a amiga perguntou porquê ela não dançava com os senhores, porquê ficava de telespectadora das festinhas. A resposta estava pronta para escorrer pela língua e ganhar o ambiente. “Enquanto todos saem cansados, vou para casa com os meus pés descansados”, afirmou Candinha, fazendo jus ao voto de férias às extremidades dos membros inferiores.

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NdA:
Abraços aos que não perderam a esperança de um novo post.
Quando percebi a pastinha tinha muito mais textos de trabalho e faziam exatos seis meses que não postava nada, “simexi”. Até daqui outros seis. Quiçá.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O morcegão do rancho

Ar puro, verde ao redor e o cacarejar do galo aos primeiros raios do dia. Era tudo que Antônio desejara. Após anos e anos de trabalho em uma autarquia do Estado em que nasceu e outros empreendimentos que não deram tão certo, porém não causaram prejuízos ou traumas, o Tunico enfim conseguira a desejada casinha no campo.

Acordava cedo, com os galos a cantar e se embrenhava nas matas. Cuidava de sua propriedade, sempre a pensar em criar bichos e grãos. Entretanto, antes de buscar meios de fazer com que a propriedade fosse próspera, era preciso implementar melhorias na estrutura física do sitio que já possuía porteira e ainda clamava por nome e placa.

Arduamente, construiu um ranchinho para guardar os apetrechos que tinha e adquiria para manusear os artefatos da lavoura. Dia desses, deparou-se com hóspedes inesperados. A cabana passara a servir de morada de tenebrosos morcegos, que preferiram a construção bem cuidada à mata. Nascia um problema para aquelas bandas em que os problemas deveriam ser deixados de lado.

Tentou espantá-los a golpes de vassoura. Quase foi açoitado pelos voadores mamíferos e ainda quebrou o artigo utilizado na limpeza do chão de residências. Com o conhecimento acumulado ao longo dos anos, pensou em soluções em que a razão dava lugar a força física. Ao assistir um filme de terror durante uma noite tivera a idéia: colocaria dentes de alho próximo ao local para afugentar os malígnos.

Dito e feito. Deu três dias para que os asquerosos bichinhos deixassem o local batendo as asas. Terminado o prazo, foi ao rancho assim que acordou para regozijar-se com o feito. Ao adentrar ao rancho percebeu que os animais continuavam a freqüentar o local. Pior. Andavam famintos e comeram os alhos. Deu um tapa na testa e franziu as feições. “Esqueci de colocar a água benta”.