Se parasse para imaginar como seria sua vida dali 10 anos jamais teria lhe ocorrido encontrar aquela figura, pitorescamente, estranha. A vida de Lourival pode ser comparada à jornada do garoto Buscapé, aquele do aclamado filme de Fernando Meirelles, Cidade de Deus. De infância humilde, filho de uma antiga cidade litorânea catarinense, adentrou ao jornalismo por baixo. “Bem por baixo”. Entregava jornais diariamente nas residências e estabelecimentos comerciais na cidade natal e arredores. Sua persistência em se tornar fotógrafo foi recompensada com a titularidade do posto em um aclamado periódico do sul do mundo.
E foi por detrás das mesas da redação que se deparou com o caricato senhor. Passado dos sessenta, vestes bem diferentes das quais costuma estampar em suas colunas sociais e piadinhas tão antigas quanto o que ainda considera “um luxo”. Era o novo colunista do veículo em que Lourival trabalhava. No primeiro contato, amor à primeira vista. Pelo menos por parte do velhinho metido, com pinta de preferências sexuais distintas das do rapaz da máquina fotográfica.
Ainda nos primeiros dias, o safadinho velhote começara suas investidas. “Que belos olhos você tem, rapaz”. Foi a primeira dos lábios murchos e de baba melada. Daí por então, foram várias estocadas. “Pareces um ator da Globo”, “rapaz, mas que porte você tem”, “você é casado? Sua esposa deve ser uma mulher muito feliz”, cortejava o senhor que gostava de estampar casais cinqüentenários, políticos regionais e “bon vivants” em seu espaço diário, além de um dos netos uma vez por semana.
As cantadas explícitas do sexagenário chegavam a causar embaraço nos colegas. Lourival fazia de conta que estava com problemas auditivos. Dizem que certa vez o festivo senhor deixara escapar em voz alta um “ô, lá em casa”, seguido de um suspiro. Ninguém confirma.
As carícias verbais do idoso eram cada vez mais frequentes e contundentes. O fotógrafo se esquivava do jeito que podia. Forjava uma longa conversa com o colega da mesa ao lado para tentar se proteger das, já, súplicas do vovô. Porém, por ossos do ofício, foi designado para realizar uma cobertura fotográfica de um evento promovido pelo faceiro velhinho. Durante a festa, ao pé do ouvido, fazia pedidos indecorosos. Eram respondidos com risadas pelo puro Lourival. Naquela noite voltara para casa com belo par de tênis Phuna, um dos mais cobiçados pelos rapazes da mesma jovem idade.
Por diante, era um rol de agrados. Certa vez chegou ao trabalho com iPod novíssimo. Semanas depois aparecera de camisa nova, aparentemente cara. Era um festival de regalos que deixava os amigos desconfiados da origem, já que somente com o salário do periódico não seria possível adquirir tais e tantos produtos. Numa partida futebolística da empresa, Gráfica x Redação, chegara atrasado, porém animado. Na véspera fora cobrir um outro evento promovido pelo vovô. O par de chuteiras novos, caneleiras, meiões e camisa afirmavam o que então eram desconfianças. Lourival cedera aos apelos do senhor e recebia presentes em troca de “favores”.
quinta-feira, 28 de maio de 2009
sexta-feira, 22 de maio de 2009
Viagem no tempo
Moravam numa casa pequena, porém viviam rodeadas por um cenário que beirava o paradisíaco. Mas, Geralda e Marisa já estavam desgastadas pelo tempo. Pelas doenças também. Mãe e filha, viúva e solteirona, não arredavam pé dos limites domésticos. O convite a um passeio proporcionado por um belo dia de sol era menosprezado pela dupla. Geralda com 55 anos ficava deitada o dia inteiro. Mamãe Marisa, 77, atendia às manhas da filha e gostava de espiar a vizinhança pela janela.
Gerardinha, como se referiam jocosamente, era hipocondríaca. Algo ao extremo. De dar inveja e até causar espanto àqueles que tomam analgésico prevendo uma dor de cabeça nas próximas horas. Arrumava doenças inimagináveis. Dizem que uma vez Geralda alegou que era alvo de cupins que estariam roendo a mobília. A dedetização na casinha comprovara que os bichinhos jamais passaram por aquelas bandas. Crescia a suspeita de que as marcas no corpo eram fruto do enorme volume de remedinhos de ingeria.
“Gerarda” ficava na cama o dia inteiro. Levantava-se somente para ir ao banheiro. Isso quando nem se dava ao trabalho e fazia sobre o colchão. Não era das mais asseadas. Ao contrário da mãe. Dona Marisa, ainda que de forma estabanada, culpa da velhice que batera à porta e adentrara, à sua maneira dava conta dos serviços domésticos. Dava uma varridinha na casa, preparava as refeições e cuidava da filha. Só deixava o lar para ir ao supermercado ou à farmácia renovar o estoque da hipocondríaca e comprar as vitaminas que necessitava. Tomava cálcio para os ossos.
Ainda assim, mãe e filha viviam enclausuradas na casinha de 80 metros quadrados: sala/cozinha, banheiro e quarto. Não davam bola para a praia, a poucos metros, nos fundos da residência. Por conta disso, pareciam viver em um fuso horário diferente dos cidadãos comuns. Não era raro serem surpreendidas por visitas almoçando às dez da matina ou às cinco da tarde. O cotidiano irregular podia ser culpado pelas doenças de Geralda, que pareciam se agravar durante as madrugadas.
Dia desses, Dona Marisa passava o café durante um belo dia de verão. Intervalado por ais e uis, a filha repousava no quarto, com a janela fechada. Entre suspiros e aos gritos questionara a zelosa senhora: “Mamãe, que horas são?”. A velhinha direcionou o olhar ao relógio de ponteiros. O menor no oito, o maior próximo ao três. “São oito e quinze, minha filha”, respondeu. Segura que não estava suficientemente informada, Geralda deitada sobre a cama e aos berros, lança nova indagação para Marisa. “Da manhã ou da noite?”. A resposta demorou alguns instantes, mas saiu. “Pois eu não sei”, dando fim ao diálogo.
Gerardinha, como se referiam jocosamente, era hipocondríaca. Algo ao extremo. De dar inveja e até causar espanto àqueles que tomam analgésico prevendo uma dor de cabeça nas próximas horas. Arrumava doenças inimagináveis. Dizem que uma vez Geralda alegou que era alvo de cupins que estariam roendo a mobília. A dedetização na casinha comprovara que os bichinhos jamais passaram por aquelas bandas. Crescia a suspeita de que as marcas no corpo eram fruto do enorme volume de remedinhos de ingeria.
“Gerarda” ficava na cama o dia inteiro. Levantava-se somente para ir ao banheiro. Isso quando nem se dava ao trabalho e fazia sobre o colchão. Não era das mais asseadas. Ao contrário da mãe. Dona Marisa, ainda que de forma estabanada, culpa da velhice que batera à porta e adentrara, à sua maneira dava conta dos serviços domésticos. Dava uma varridinha na casa, preparava as refeições e cuidava da filha. Só deixava o lar para ir ao supermercado ou à farmácia renovar o estoque da hipocondríaca e comprar as vitaminas que necessitava. Tomava cálcio para os ossos.
Ainda assim, mãe e filha viviam enclausuradas na casinha de 80 metros quadrados: sala/cozinha, banheiro e quarto. Não davam bola para a praia, a poucos metros, nos fundos da residência. Por conta disso, pareciam viver em um fuso horário diferente dos cidadãos comuns. Não era raro serem surpreendidas por visitas almoçando às dez da matina ou às cinco da tarde. O cotidiano irregular podia ser culpado pelas doenças de Geralda, que pareciam se agravar durante as madrugadas.
Dia desses, Dona Marisa passava o café durante um belo dia de verão. Intervalado por ais e uis, a filha repousava no quarto, com a janela fechada. Entre suspiros e aos gritos questionara a zelosa senhora: “Mamãe, que horas são?”. A velhinha direcionou o olhar ao relógio de ponteiros. O menor no oito, o maior próximo ao três. “São oito e quinze, minha filha”, respondeu. Segura que não estava suficientemente informada, Geralda deitada sobre a cama e aos berros, lança nova indagação para Marisa. “Da manhã ou da noite?”. A resposta demorou alguns instantes, mas saiu. “Pois eu não sei”, dando fim ao diálogo.
terça-feira, 19 de maio de 2009
Dez é demais
A casa ficava no interior de uma pequena cidade. O provento do lar vinha da lavoura e dos trabalhos esporádicos que o patriarca fazia. Muitas bocas a alimentar. Para piorar, o calendário era de algum ano da década 1970. Era este era o cenário da família Cirilo, descendência italiana, que vivia por este Sul do mundo. Vivam dignamente. De acordo com suas precárias possibilidade.
Por causa das finanças domésticas curtíssimas, nem rádio possuíam. Fator que explica a “ninhada” de dona Mariazinha: 10 rebentos. Bastava ela olhar para as vestes íntimas do marido penduradas no varal que a barriga começava a crescer. Os moradores daquele vilarejo, inclusive, contam que a partir do sétimo filho, Mariazinha nem se dava ao trabalho. Acocorava-se, paria, dava palmadas na criança e a colocava para conviver com as demais. Ainda meio suja da bolsa amniótica.
Na velha casa de madeira haviam cinco cômodos: sala, cozinha e três quartos. Dos três, um para o casal, outro para a filharada e o terceiro era o sagrado quarto de visitas. Naquele tempo, as dependências sanitárias eram construídas separadamente. A patente, como chamavam aquelas casinhas, ficava uns 50 metros da casa. Nos fundos do quintal. A ninhada dormia toda em um único aposento. Não podiam invadir o espaço destinado a acomodar os eventuais visitantes.
Sem conjunto de prato e talheres para todos, Mariazinha servia as refeições aos rebentos em grandes bacias. Também poupava água para lavar a louça. Cada qual com a sua colher ao redor da gamela. Vez ou outra os irmãos se estranhavam. Aquele que preferia “reservar” uma coxa de frango, por exemplo, num piscar de olhos, numa distração, corria o risco de ficar sem. Ao redirecionar a visão para a refeição e não encontrar o que guardara para comer no fim, lançava-se contra o alvo de suas suspeitas. Ao redor da bacia, guerra declarada.
Numa fria noite de inverno, Celsinho, uns oito anos, acordara apurado. Precisava fazer um número dois. Fax ainda era algo remoto. Como de hábito, o mais novo acordava um irmão mais velho que dormia ao lado para acompanhar até aquela casinha. Era preciso esperar que tudo deixasse de ser necessidade para, aí sim, voltar ao sono. Embalados, alguns não cediam às súplicas e voltavam a dormir. Sozinho, o pequeno Celso deixou o quarto e voltou minutos depois, sem fazer barulho ou alarde.
Naquele fim de semana os Cirilos receberam a visita dos tios Adamastor e Emengarda. Adamastor era irmão do patriarca Elviro. Iriam pernoitar naquela casa apertada. O quarto destinado aos visitantes ganharia utilidade. À noite, após o jantar, as lamparinas se apagaram. Todos para a cama. Na calada da noite, incomodado. Seu Elviro entrara no quarto e acordara o casal anfitrião e hospitaleiro. Não conseguia pegar no sono devido ao forte mau cheiro no recinto. Desconfiava de um animal morto e da higiene dos parentes.
O dono da casa garantiu que eram “limpinhos”, mas, ao entrar no quarto reconheceu que odor realmente incomodava. Que era de tirar o sono. Vasculharam o cômodo tentando encontrar o gerador do forte cheio. Sem sucesso, deram a própria cama ainda quente aos visitantes e ficaram com o quarto das visitas. Nas primeiras horas do dia, com o quarto iluminado, certamente encontrariam algo que justificasse aquela verdadeira catinga.
Não apenas descobriram o motivo do fedor no quarto ao lado, como acharam a causa do apuro de Celsinho, há poucos dias. Entre as tralhas debaixo da cama, um guarda-chuva, ao ser aberto revelava um montinho estranho. Para não ter de atravessar o quintal solitário, o menino defecou dentro do guarda-chuva, fechou e o colocou de baixo da cama do cômodo de visitantes.
Por causa das finanças domésticas curtíssimas, nem rádio possuíam. Fator que explica a “ninhada” de dona Mariazinha: 10 rebentos. Bastava ela olhar para as vestes íntimas do marido penduradas no varal que a barriga começava a crescer. Os moradores daquele vilarejo, inclusive, contam que a partir do sétimo filho, Mariazinha nem se dava ao trabalho. Acocorava-se, paria, dava palmadas na criança e a colocava para conviver com as demais. Ainda meio suja da bolsa amniótica.
Na velha casa de madeira haviam cinco cômodos: sala, cozinha e três quartos. Dos três, um para o casal, outro para a filharada e o terceiro era o sagrado quarto de visitas. Naquele tempo, as dependências sanitárias eram construídas separadamente. A patente, como chamavam aquelas casinhas, ficava uns 50 metros da casa. Nos fundos do quintal. A ninhada dormia toda em um único aposento. Não podiam invadir o espaço destinado a acomodar os eventuais visitantes.
Sem conjunto de prato e talheres para todos, Mariazinha servia as refeições aos rebentos em grandes bacias. Também poupava água para lavar a louça. Cada qual com a sua colher ao redor da gamela. Vez ou outra os irmãos se estranhavam. Aquele que preferia “reservar” uma coxa de frango, por exemplo, num piscar de olhos, numa distração, corria o risco de ficar sem. Ao redirecionar a visão para a refeição e não encontrar o que guardara para comer no fim, lançava-se contra o alvo de suas suspeitas. Ao redor da bacia, guerra declarada.
Numa fria noite de inverno, Celsinho, uns oito anos, acordara apurado. Precisava fazer um número dois. Fax ainda era algo remoto. Como de hábito, o mais novo acordava um irmão mais velho que dormia ao lado para acompanhar até aquela casinha. Era preciso esperar que tudo deixasse de ser necessidade para, aí sim, voltar ao sono. Embalados, alguns não cediam às súplicas e voltavam a dormir. Sozinho, o pequeno Celso deixou o quarto e voltou minutos depois, sem fazer barulho ou alarde.
Naquele fim de semana os Cirilos receberam a visita dos tios Adamastor e Emengarda. Adamastor era irmão do patriarca Elviro. Iriam pernoitar naquela casa apertada. O quarto destinado aos visitantes ganharia utilidade. À noite, após o jantar, as lamparinas se apagaram. Todos para a cama. Na calada da noite, incomodado. Seu Elviro entrara no quarto e acordara o casal anfitrião e hospitaleiro. Não conseguia pegar no sono devido ao forte mau cheiro no recinto. Desconfiava de um animal morto e da higiene dos parentes.
O dono da casa garantiu que eram “limpinhos”, mas, ao entrar no quarto reconheceu que odor realmente incomodava. Que era de tirar o sono. Vasculharam o cômodo tentando encontrar o gerador do forte cheio. Sem sucesso, deram a própria cama ainda quente aos visitantes e ficaram com o quarto das visitas. Nas primeiras horas do dia, com o quarto iluminado, certamente encontrariam algo que justificasse aquela verdadeira catinga.
Não apenas descobriram o motivo do fedor no quarto ao lado, como acharam a causa do apuro de Celsinho, há poucos dias. Entre as tralhas debaixo da cama, um guarda-chuva, ao ser aberto revelava um montinho estranho. Para não ter de atravessar o quintal solitário, o menino defecou dentro do guarda-chuva, fechou e o colocou de baixo da cama do cômodo de visitantes.
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